Clássico do dia: 'Jules e Jim', de Truffaut, e a saudade das coisas relegadas ao esquecimento

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado', como este que conta a história de dois homens apaixonados pela mesma mulher

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Jean Tulard faz um retrato acurado de François Truffaut no Dicionário de Cinema. Teve uma infância difícil, desertou o Exército, poderia ter virado delinquente. Salvou-o o cinema, por meio do respeitável crítico André Bazin, que o apadrinhou. Truffaut virou um crítico virulento, que investiu contra (e demoliu) boa parte dos diretores franceses famosos dos anos 1940 e 50. Apreciava os filmes B norte-americanos, mas, como autor, seguiu a tradição francesa de qualidade, que repudiara. Clássico, um tanto acadêmico, foi o cineasta do amor, mesmo desconfiando do romantismo. Criou a própria biografia sentimental, fazendo filmes pessoais, senão autobiográficos, com seu alter-ego, Jean-Pierre Léaud, interpretando Antoine Doinel numa série que começou com Os Incompreendidos, em 1959.

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Existem críticos que veneram Truffaut e sua série. É considerado, com Jean-Luc Godard, um dos expoentes do movimento nouvelle vague. Sua morte prematura, aos 52 anos, em 1984, provocou comoção na França, mas Truffaut está longe de ser uma unanimidade. Mesmo assim, não há como negar que ele fez grandes filmes. Dois - Jules e Jim, de 1961, lançado no Brasil como Uma Mulher para Dois, e O Garoto Selvagem, de 1968, no qual foi também ator. São filmes um tanto atípícos, em termos. Abordam a educação amorosa, o primeiro, a educação, entendida como posse de uma linguagem, da cultura, o segundo.

O professor Itard (Truffaut) resgata Victor, criado por lobos, e luta para reintegrá-lo na vida social. Talvez L'Enfant Sauvage seja o mais belo, o mais pungente filme de Truffaut, mas Jules e Jim possui um encanto especial. Paulo Francis dizia que era uma obra-prima de politesse francesa. Adaptado do romance de Henri-Pierre Roché, conta a história de dois homens apaixonados pela mesma mulher. As variações do amor – também baseado em Roché, Truffaut fez As Duas Inglesas e o Amor, de 1971, que segue o caminho inverso, duas mulheres apaixonadas pelo mesmo homem. Em 1975, radicalizou e fez de Isabelle Adjani, em A História de Adèle H, uma mulher obcecada por um homem que a rejeita e com o qual, no limite, nem ela quer nada. Uma mulher apaixonada pelo amor. A entropia dos sentimentos.

Cena de Jules e Jim Foto: Alpha Filmes

Jules e Jim, Oskar Werner e Henri Serre, envolvem-se com a mesma mulher, a terna e cruel Catherine, uma criação fora de série de Jeanne Moreau. Truffaut chegou a dizer, sobre seu filme, que trabalhara sobre o contraste. A situação era, em si, tão extraordinária que ele orientou seus atores para o naturalismo. Outras declarações que ajudam a entender o conceito - “Quis que o filme se parecesse com um álbum de fotos antigas”; “Catherine é fabulosa, se conhecêssemos uma mulher assim na vida, veríamos seus defeitos, mas o filme os ignora.” E a melhor - “Um psiquiatra francês disse, com toda razão, que o filme é sobre dois garotos apaixonados por sua mãe.” Uma mulher adiante do seu tempo, que vive sob o mesmo teto com dois homens. Catherine dorme um dia com um, depois com outro. De braço dado com Jim, e subindo para o quarto, diz, ao pé da escada - “Boa noite, Jules.”

Numa cena, canta Tourbillon, e Jeanne seguiu uma carreira de cantora. A vida como um turbilhão. De onde vem o magnetismo dessa mulher? (a personagem, como a atriz.) Deitado na cama, Jules vê Catherine tirar a maquiagem. Olha-a siderado pelo espelho, e o olhar dele é o nosso, do público. A história passa-se no começo do século passado, e em outra cena Truffaut mostra um cinejornal em que simpatizantes nazistas queimam livros. Esse ataque à cultura é certamente mais chocante do que o triângulo formado por uma mulher e dois homens. A frase de um amigo do trio, emprestada de Oscar Wilde, reitera a ausência de moralismo - “Deus, poupe-me da dor física, porque da moral me ocupo eu.” Mas a situação torna-se insustentável e, desse trio, sobra apenas um integrante.

O álbum antigo de Truffaut possui belíssimas imagens em preto e branco. A trilha musical de Georges Delerue e o elenco são inesquecíveis, em especial Jeanne e Werner, o Jules. Anos depois, em Hollywood, o western celebrou outro triângulo, em Butch Cassidy, de 1970. Butch, o Sundance Kid e Etta Place são crias de Jules, Jim e Catherine, mas o que aproxima de verdade os filmes é outra coisa. O diretor George Roy Hill entendeu Truffaut melhor do que muito crítico. Jules e Jim, e Butch Cassidy repete, é sobre a saudade das coisas mortas relegadas ao esquecimento e das vivas que esquecemos antes mesmo que virem lembrança.]

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