Em um texto publicado na Cahiers – março de 1959 -, Luc Moullet exalta o cinema em estado puro de Samuel Fuller. Destaca como suprema qualidade o que era a fraqueza de Fuller para a crítica de esquerda da época. Increvia-o num quadro genérico, o dos jovens diretores norte-americanos da época. Dizia que eles não tinham nada a dizer, e Fuller menos ainda. No texto longo, que ocupa várias páginas do volume Cahiers du Cinéma – The 1950s, Neo-realism, Hollywood, New Wave, da Harvard University Press, Moullet se contradiz ao enumerar os temas, dissecar o estilo. Esse Fuller, afinal, tinha o que dizer.
Mas o ponto era o seguinte - o que ele (Fuller) queria fazer ou dizer, fazia e dizia naturalmente, sem esforço. Em seu texto, Moullet desabafa contra os diretores que gostariam de ser filósofos e enchem nosso saco – definição dele – apenas repetindo nos filmes as descobertas das outras artes. O cinema é outra coisa, proclama – é Fuller. O próprio Fuller deu sua definição, anos depois, em um filme de Jean-Luc Godard. Em Pierrot le Fou/O Demônio das Onze Horas, de 1965, falando diretamente para a câmera, ele compara o cinema à guerra. Como diretor – o suprassumo do autor, segundo Cahiers –, Fuller foi sempre vinculado à produção B, e aos filmes de gênero. Seu nome virou sinônimo de ação.
Um antigo jornalista – policial, especializado em crimes -, Fuller fez thrillers criminais com ares de melodramas. Seus westerns são filmes de guerra, e nos de guerra não existem heróis. Apenas sobreviventes. Fuller foi soldado na guerra. Viu de perto a carnificina. Filmava a violência com crueza. Um homem que tem a mão decepada num filme, outro que é esfolado vivo. Fuller esculpiu sua reputação para a Cahiers em filmes como O Barão Aventureiro, Anjo do Mal, Casa de Bambu, Renegando o Meu Sangue, O Quimono Escarlate. Iniciou os 60 com A Lei dos Marginais, um filme de gângsteres. Foi à fonte da tragédia grega – os deuses enlouquecem primeiro aqueles a quem querem destruir – em Paixões Que Alucinam/Shock Corridor. Um jornalista interna-se num instituto psiquiátrico para escrever uma reportagem. Encontra figuras bizarras – um negro que se diz integrante da KKK (o pré-Spike Lee, Infiltrado na Klan?) -, mas não resiste aos choques, e enlouquece. Em 1964, Fuller fez sua obra-prima.
O problema é que os antigos críticos da Cahiers se haviam tornado cineastas. Estavam imersos nas próprias carreiras como autores e não tiveram tempo de defendê-lo. Pode até ser que não tenham gostado, pois era um Fuller 'diferente'. Um melodrama, uma personagem feminina. No universo masculino do autor, algumas mulheres se destacavam, mas nenhuma como essa. Nos EUA, a crítica caiu matando. The Naked Kiss/Beijo Amargo foi chamado de 'camp'. Os diálogos foram considerados risíveis. Os críticos talvez nem se tenham dado conta de que riam de citações a Byron e Baudelaire. No seu Guide for The Film Fanatic, Danny Peary reconhece o gênio e coloca Beijo Amargo no patamar das grandes obras do cinema. Mas é uma exceção. Beijo Amargo é um biscoito muito fino, reconhecido por pouquíssimos.
O começo é 100% fulleriano. Uma cena de choque. Uma mulher espanca um homem e, na briga, ele puxa seu cabelo. É uma peruca, ela está careca. Acaba com ele. Essa mulher é Kelly, uma prostituta, O sujeito é o gigolô que tomou o dinheiro dela, raspou seus pelos – todos. Desgostosa, enojada, ela abandona a cidade e cai na estrada. Faz sexo para sobreviver. A essa altura, o espectador já descobriu que é uma p... intelectual – letrada -, daí as citações. Chega a uma cidadezinha, Grantville. O xerife é seu primeiro cliente, mas, terminado o ato, ele a despacha para um bordel do outro lado dos trilhos, distante das pessoas de bem. Mas ela, que cansou da vida errante, resolve criar raízes. Abandona o métier e vai trabalhar numa casa que acolhe crianças deficientes. Dedica-se a elas.
O dono da cidade é Grant, um milionário bonitão. Casa-se com Kelly. Parece o perfeito melodrama, e mais que isso – um conto de fadas. A Cinderela resgatada pelo príncipe, só que, na fábula sombria de Fuller, o príncipe é podre. Seu beijo, o título não nega, é amargo. Kelly surpreende-o molestando uma menina. Interpela-o, e ouve a verdade nua e crua. Grant tomou-a como esposa porque não consegue domar seus instintos perversos. Precisa de uma esposa, uma fachada. Nenhuma mulher 'normal' o aceitaria, só Kelly, a quem chama de 'abnormal', pode entendê-lo. Ressurge a leoa raivosa da primeira cena. Ela mata o marido. Ninguém, muito menos o xerife, acredita na sua versão. Somente as outsiders como ela – a virgem renitente, a enfermeira solteirona, a grávida e solteira. Vivem fora da ordem hipócrita que rege Grantville.
A verdade é restabelecida quando a menina molestada reaparece, mas, a essa altura, Kelly já tomou distância dessas falsas pessoas de bem. Rejeita os pedidos de desculpas. Prefere voltar à estrada, ser p... de novo à dama em Grantville. Em sua análise, Luc Moullet defende Fuller à luz da teoria de autor – na Cahiers, a definição era politique des auteurs. Moullet via no cinema de Fuller a versão adulta da rebeldia juvenil de Jean Vigo. Nos westerns, nos policiais e nos filmes de guerra, o diretor sempre se insurgiu contra os representantes da autoridade e da ordem. Moullet saudava nele a desordem Vigo-esque. Pensando em questões de gênero – humano e social, não cinematográfico -, Fuller estava adiante de sua época com essa heroína única, que não se assemelha a nenhuma outra – talvez a doutora Anne Bancroft de Sete Mulheres, o último John Ford, de 1966.
Beijo Amargo tem apenas 92 minutos de duração. É um modelo de straight shooting, com a fotografia em preto e branco de Stanley Cortez, um dos grandes operadores da história. Nascido Stanley Krantz, ele era irmão de Jacob Krantz, que virou ídolo das matinês como Ricardo Cortez. Capitalizando a fama do irmão, rebatizou-se como Stanley Cortez. Fotografou para Orson Welles (The Magnificent Ambersons/Soberba) e Charles Laughton (O Mensageiro do Diabo). Foi um dos maiores poetas do PB, dominava com elegância os longos movimentos de câmera. Os planos sequências do Welles, o passeio noturno no Laughton bastariam para colocá-lo nas antologias de cinema. Mas ele ainda fotografou para Fuller, Paixões Que Alucinam e Beijo Amargo.
Impossível reportar-se a esses filmes sem fazer o elogio à atriz Constance Towers. Constance quem? Danny Peary diz que a Kelly de Beijo Amargo é uma personagem que, além dela, só a Joan Crawford da grande fase poderia ter interpretado. Constance tende a ser subestimada e até ignorada por críticos e historiadores de cinema, mas ela teve o privilegio de atuar duas vezes em westerns de John Ford e duas vezes com Fuller. São filmes que pertencem à história – Marcha de Heróis e Audazes e Malditos, de 1959/60, Paixões Que Alucinam e Beijo Amargo. Quem quer que reveja esses filmes com o olhar de 2020 poderá constatar que, com Ford e Fuller, Constance criou mulheres que não se enquadravam nos padrões de Hollywood, por volta de 1960.
Constance começou como cantora de rádio. Preparou-se para ser cantora de ópera. Descobriu o cinema, ou melhor, o cinema descobriu-a. Após esse quarteto fantástico de filmes – a narrativa em flash-back do western antirracista de Ford (Audazes e Malditos) é considerada fora de esquadro na carreira do diretor; seus filmes com Fuller são quase sempre classificados como experimentais -, ela seguiu uma carreira aclamada. Participou do revival de grandes muicais – Show Boat, The Sound of Music, O Rei e Eu, esse, com o próprio Yul Brynner. Na TV, foi a vilã de uma série que durou anos – General Hospital. Kelly é o ponto alto de uma carreira que foi extraordinária. Beijo Amargo é um clássico, o maior Fuller. Ele morreu em 1997, aos 85 anos.
Onde assistir:
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