Clássico do Dia: 'O Mundo não Perdoa' foi um marco do cinema versus racismo

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado'; longa escolhido tem direção de Clarence Brown, que adaptou o texto de William Faulkner

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Havia uma nova consciência negra nos EUA, na segunda metade dos anos 1960. Na década que mudou tudo, os afrodescendentes saíram do gueto reclamando seus direitos. Organizaram-se marchas, as cidades do Sul arderam nos protestos. Duas vias, a pacífica do Dr. Martin Luther King, a convulsiva de Malcolm X. Em 1963, Sidney Poitier fizera história ao receber o Oscar de melhor ator por Uma Voz nas Sombras/Lillies of the Field, de Ralph Nelson. Quatro anos mais tarde, Poitier de novo fez história como Virgil Tibbs, o policial da cidade grande que deixa em polvorosa uma cidadezinha racista, ao resolver caso de assassinato para xerife bronco.

Cena do filme 'O Mundo não Perdoa', com Juano Hernandez Foto: MGM

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No Calor da Noite/In the Heat of the Night recebeu o Oscar de melhor filme, Rod Steiger, o xerife, foi melhor ator – tem gente que jura que foi por que a Academia quis se penitenciar por não lhe haver atribuído o prêmio pelo judeu usurário, atormentado pelas lembranças do Holocausto, no pungente O Homem do Prego/The Pawnbroker, de Sidney Lumet -, mas a estatueta de direção de 1967 foi para o Mike Nichols de A Primeira Noite de Um Homem/The Graduate, com Dustin Hoffman. Quase 20 anos antes, em 1949, a Academia esquecera-se de premiar Intruder in the Dust, que Clarence Brown adaptou do romance de William Faulkner, com roteiro de Ben Maddow (e o escritor deu uma mexidinha no script). Lançado no Brasil como O Mundo não Perdoa, foi um marco na vertente do cinema versus racismo, focando a questão do negro, mas hoje está um tanto – e injustamente – esquecido.

Pauline Kael, a mais famosa crítica de cinema da 'América', queixava-se de certas frases, verdadeiras sentenças que tentavam aplacar as boas consciências culpadas, mas até ela reconhecia que se tratava de um trabalho superior, o melhor de Brown. Cineasta de prestígio na Metro, ele foi, no estúdio, o diretor oficial de Greta Garbo, com quem fez, entre 1926 e 37, nada menos de sete filmes, incluindo A Carne o Diabo, Mulher de Brio, Anna Karenina e Madame Waleska. A aposentadoria antecipada da estrela não acabou com seu status e Brown ganhou permissão especial de Louis B. Mayer para fazer, na Fox, o espetacular E as Chuvas Chegaram. Voltou à Metro para novos sucessos – A Mocidade É Assim Mesmo, Virtude Selvagem – até, de repente, se aventurar por essa seara do cinema mais social.

Vale lembrar que, em 1944, William Wellman já realizara Consciências Mortas/The Ox-Bow Incident, western que causou sensação pelo tema do linchamento, que ainda era um fenômeno tão frequente quanto brutal na sociedade sulista. Brown, com base em Faulkner, retornou ao tema, e com o foco na raça. Lucas Beauchamp é um negro altivo, tem seu pedaço de terra, vai à igreja, tudo muito certo. Como no livro, ele é teimoso e insuportável, e enfurece os brancos do condado pelo simples fato de ter consciência do próprio valor e recusar-se a ser submisso. Torna-se um estorvo, e basta um assassinato não resolvido para que a comunidade resolva transformá-lo em bode expiatório. Lucas sofre linchamento moral, e está a um passo de ser linchado de verdade - destruição física. O xerife sabe que ele é inocente, mas está atado.

Quem tenta reverter o quadro é o garoto branco Chick, interpretado por Claude Jarman Jr., que havia sido o jovem que tenta salvar o cervo que destroi a plantação da família em Virtude Selvagem, do próprio Brown. No passado, Chick gozou da hospitalidade de Lucas, e tentou pagar por ela, o que ofendeu o hospedeiro. Sentindo-se em dívida moral com o velho - toda a questão do filme é de ética -, Chick tenta ajudá-lo, mas, no limite, quem salva Lucas é a velhinha Elizabeth Patterson, ao oferecer a evidência que leva ao culpado. E ela faz isso porque é o certo, doa a quem doer. Apesar do desfecho, não é um happy end, porque a permanência de Lucas, a consciência de que tentaram eliminá-lo injustamente, será um peso para todos.

Brown filmou sua história em Oxford, no Mississippi, com figuração local. Anos depois, Bob Dylan compôs Oxford Town, inspirado nas violentas manifestações que marcaram a admissão de um estudante negro, James Meredith, na universidade local, em 1962. “No cômputo geral, é um bom filme”, disse o exigente Faulkner. O Mundo não Perdoa foi muito mais do que isso. Não é preciso remontar a O Nascimento de Uma Nação, de David Wark Griffith, de 1915, para lembrar como negros eram tratados – e linchados – no Sul, que permaneceu até os anos 1970 reduto da KKK, como bem mostrou Spike Lee no premiado (Oscar de 2019) Infiltrado na Klan. O Mundo não Perdoa é um marco, um clássico. E Juano Hernandez, que faz Lucas Beauchamp, é genial. Hernandez veio do teatro e, no cinema, trabalhou com o pioneiro negro Oscar Michaeux. Claro – não foi nem indicado para o Oscar.

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