Clássico do Dia: 'Quando Explode a Vingança', de fiasco a filme mais político de Sergio Leone

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado', como este de 1971 do diretor italiano, situado na fase mais brutal da Revolução Mexicana, que foi mal compreendido na estreia

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Quando morreu, em 30 de abril de 1989, aos 60 anos, Sergio Leone estava há seis sem dirigir. Mas não estava inativo. Preparava seu projeto mais grandioso, um filme de guerra sobre o cerco a Stalingrado, durante a 2.ª Guerra Mundial. Tendo estreado em 1959, ao finalizar Os Últimos Dias de Pompeia, de Mario Bonnard, ele começou nas aventuras mitológicas que dominavam a produção industrial italiana. Fez O Colosso de Rhodes, em 1960. Quatro anos mais tarde, com Por Um Punhado de Dólares, iniciou a série de westerns. Em 1983, foi a incursão pelo cinema de gângsteres, com Era Uma Vez na América. Depois viria o filme de guerra.

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Leone admirava os gêneros – a trilogia do Estranho sem Nome, com Clint Eastwood, tornou-o famoso. Iniciou o que deveria ser outra trilogia – C'Era Una Volta. Era Uma Vez – no Oeste, na Revolução, na América. Por motivos que nunca ficaram perfeitamente claros, o filme intermediário dessa programada segunda trilogia foi mudando de nome. Viriou Giú la Testa, depois Duck You Sucker, finalmente A Fistful of Dynamate. Depois de Por Um Punhado de Dólares, Um Punhado de Dinamite. No Brasil, foi lançado como Quando Explode a Vingança. É quase sempre considerado o fiasco de Leone. Foi barbaramente mutilado (pela empresa produtora e distribuidora United Artists), mal compreendido (pela crítica e pelo público). Nada como o tempo para recolocar as coisas em perspectiva. No começo do ano, num lançamento da Eureka/Masters of Cinema, a versão de 2009, restaurada pela Cineteca de Bolonha, de 157 min, ganhou a aclamação que não teve na origem. Está sendo considerado o mais político dos filmes de Leone.

A ambientação da história durante a Revolução Mexicana e a proximidade do célebre Maio de 68 ajudam a explicar por que o background histórico é tão importante. O retorno a Leone – ao maior Leone? - seria inevitável numa série de 'clássicos'. A morte do compositor Ennio Morricone, em 6 de julho de 2020, ajuda a acelerar as coisas. Se o russo Andrei Tarkovski quis esculpir o tempo, o italiano Leone sempre teve como conceito estender o tempo. Jean Tulard, no Dicionário de Cinema, comenta a lentidão dos gestos. Gastam-se cinco minutos para puxar da arma, ao som de uma música lancinante. Justamente a música. O tempo dos filmes de Leone é indesligável das trilhas de Morricone. Com ele, o western, o filme de gângsteres, a revolução viraram óperas.

Giú la Testa – em Portugal, o filme chamou-se Aguenta-te Canalha – mostra dois homens que se encontram durante a Revolução Mexicana. Dois amigos, e a amizade foi sempre importante para o diretor. No livro com a entrevista que deu a Noel Simsolo – Conversation avec Sergio Leone, Petite Bibliothèque des Cahiers du Cinéma -, ele conta como foi difícil ser filho único. Sempre quis ter um irmão para compartilhar as descobertas da infância e da juventude. Um camponês, Juan Miranda, e um revolucionário irlandês, Sean Mallory. Encontram-se na mais bizarra das circunstâncias, durante um assalto a banco. A multidão, que não está entendendo nada, toma o campônio ladrão por líder revolucionário e o irlandês (nada a ver com o de Martin Scorsese, de 2019; a nostalgia é pelo IRA, o Exército Republicano Irlandês) o exorta a colar ao papel. A origem, pelo menos para Leone, era a cena de Tempos Modernos, de 1936, em que Carlitos pega a bandeira do chão e a massa o segue. 

Cena de 'Quando Exolode a Vingança' Foto: Euro International Film

Não era um filme que o próprio Leone estivesse planejando realizar. Com Era Uma Vez no Oeste, seu quarto western, esgotara um ciclo, ou assim lhe parecia. Pensava só ajudar dois amigos, seu cunhado, Fulvio Morsella e um de seus mais próximos colaboradores, Claudio Mancini.

Eles queriam produzir. Leone lhes conseguiu o tema e a empresa produtora, a United Artists. A empresa enviou Peter Bogdanovich à Itália, como possível diretor. De cara, Leone conta a Simsolo que antipatizou com o cara. Outra tentativa, com Sam Peckinpah, também não deu certo. A poucos dias do início das filmagens, Peckinpah caiu fora e não restou a Leone senão assumir. Conta que foi tudo uma conspiração para forçá-lo a fazer o filme. Desde o início, como 'supervisor' de produção, tinha seu elenco ideal na cabeça – Jason Robards e Malcolm McDowell. Sabia que os terroristas do IRA eram predominantemente jovens e achou que seria interessante um garoto servindo de mentor para o homem mais velho. A United Artists retrucou com James Coburn e Rod Steiger. Com Coburn, não teve problemas, era o ator que, lá atrás, queria para fazer o Estranho sem Nome. Só depois que ele cobrou demais voltou-se para Clint Eastwood. Leone considerava Coburn um Clint com mais humor e panache. Já com Steiger foi o desastre.

O ator havia recebido o Oscar – por No Calor da Noite, de Norman Jewison, de 1968 -, era um ator do Método. Steiger precisava interiorizar o personagem, mas tinha horário. Às 5 da tarde dava seu expediente por encerrado. Se não tiver sido um grande mentiroso, como Federico Fellini, o que ocorreu Leone dizia que foi o seguinte. Por uns dias ele aguentou os caprichos do 'astro'. A equipe, que já o conhecia, só esperava o copo de cólera transbordar. Um dia, estourou. Chamou Steiger de saco de m..., disse que seu Oscar havia sido um engano e, last but not least, acrescentou que o estava demitindo. Steiger enquadrou-se, em parte. Continuou super-representando, no pior estilo do Método. Caras e bocas. Leone resolveu cansá-lo. Repetia as cenas até 40 vezes. (Para Coburn, dizia que fosse minimalista, e o filme seria dele.) Para acalmar Steiger, o diretor assistente dizia que Leone admirava tanto sua interpretação que repetia as cenas pelo prazer de vê-lo atuar. "E o stronzo acreditava!"

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São anedotas de filmagem. No fim dos anos 1960, o cinema italiano estava no auge da era dos thrillers políticos. Damiano Damiani, Elio Petri, Francesco Rosi. Franco Solinas escrevia aqueles roteiros para Gillo Pontecorvo, Costa-Gavras. No contexto da Revolução Mexicana, Solinas escreveu Quien Sabe?/Gringo para o outro Sérgio, o Sollima. Embora situado nesse quadro, o filme de Leone não é sobre a verdadeira Revolução Mexicana. Leone só se interessava por ela como foi mostrada no cinema. Pancho Villa, Emiliano Zapata, La Cucaracha. Desconfiava das revoluções. Quando Explode a Vingança situa-se-se na fase mais brutal da revolução dos anos 1910, quando o o General Huerta quis esmagar os insurgentes. Leone reescrevia de noite, ou de madrugada, as cenas que iria filmar no dia seguinte. É conhecida a história de como Steiger interpelou-o sobre o roteiro. Leone apontou a própria cabeça e teria dito – 'Está aqui.'

A revolução lhe interessava menos que a amizade e a história de Pigmalião, mas invertida, na qual o intelectual, o irlandês, tomará uma lição de vida com o camponês iletrado. Miranda explica a Mallory sua ideia da revolução, na cena escrita por Leone - “Um tipo inteligente vem dizer ao povo que precisa se revoltar. Os pobres o escutam, acreditam e fazem a revolução. E quando o homem inteligente ganha o poder, os pobres estão mortos e é preciso começar outra revolução.” Leone estava resumindo a história de Queimada!, de Gillo Pontecorvo (e Solinas), outro filme da série dos 'clássicos do dia'. Só que na explosão final – o tal punhado de dinamite –, o sorriso nos lábios de Mallory/Coburn indica o homem que encontrou enfim seu lugar no mundo. Miranda/Steiger não deixará que ele se sacrifique sozinho. A cena da ponte é crucial – como em Três Homens em Conflito, no final da trilogia com Clint.

Como Harmônica/Charles Bronson em Era Uma Vez no Oeste, Mallory é perseguido pelo passado, consumido pelo desejo de vingança. A morte do irmão, os gritos repetidos – 'Sean, Sean, Sean!' – são seu tormento. Para o filme, Morricone criou, além dos tradicionais – para ele – temas com cordas e sopros, os trompetes, uma ária para soprano que ecoa, como lamento, no tempo reencontrado. Leone queria refletir sobre as guerras, as revoluções. Na época chegou a ser chamado de alienado pela crítica de esquerda, porque misturou suas lembranças do nazifascismo, aproveitando-se do fato comprovado de que especialistas da Alemanha atuavam como conselheiros militares no México – o que Sam Peckinpah mostrou em Meu Ódio Será Sua Herança/The Wild Bunch, de 1968 -, escolheu um figurante com a cara de Benito Mussolini, quando chegou ao poder, e vestiu-o com uniforme alemão.

Leone não considerava Quando Explode a Vingança seu melhor filme, mas era o seu favorito. Admitia que sofreu muito por esse filme, mais do que por qualquer outro, desde as confusões do título, as complicações do elenco e o fato de haver lançado o filme, internacionalmente, numa versão com 121 minutos, ou seja, com 36 minutos menos que a versão dele. Em muitos lugares foi cortado o últiomo flash-back, com os dois homens e a mulher, e ela era, para o autor, a revolução. Mallory está vivo, morto ou sonhando, com aquele seu estranho charuto de dinamite? A dinamite que Leone considerava a munição do revolucionário. E, ao mesmo tempo, a ideia da mulher como símbolo é um prolongamento de Era Uma Vez no Oeste. Claudia Cardinale distribuindo a água para os trabalhadores no fim, na cena que Leone via como como a construção do matriarcado na 'América'.

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De forma muito consciente, e claro que sem imaginar que morreria cedo – só teria tempo para mais um filme -, ele encarava Quando Explode a Vingança como a morte do western tradicionl e a morte do western que inventara. Não acreditava na revolução, mas acreditava no Che, que dizia que, apesar de tudo, não se deve perder a ternura. O filme é uma grandiosa celebração da amizade e da ternura entre homens. Vendo as execuções, Miranda/Steiger tem sua atenção chamada para o pássaro. Diz algo como 'Face a tanta desgraça, você ainda canta!' Desde o começo, o filme é torto. Miranda entra em cena fazendo sexo com a passageira da diligência. Mallory, cavalgando na motocicleta. Não mais os mocinhos heróicos, em seus cavalos. Quando os mitos morrem, a ternura vira, segundo Leone, a última esperança.

Onde assistir:

  • Telecine Play

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