Clássico do Dia: 'Queen Kelly' é outra extravagância de Erich Von Stroheim

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado', como este que durante décadas, foi visto como filme maldito, e somente em 1985 uma versão restaurada conseguiu ser mostrada ao público, mesmo assim, incompleta

PUBLICIDADE

Talvez não tenha existido farsante maior em toda a história do cinema. Filho de um modesto artesão do gueto de Viena, Erich Von Stroheim esculpiu para si mesmo uma biografia de oficial da cavalaria e frequentador da corte austríaca que não tinha nada a ver com a realidade. No cinema mudo, celebrizou-se interpretando oficiais prussianos. Seu lema, aos olhos do público — “O homem que vocês amarão odiar”. Transformado em diretor, construiu duas lendas — a dos filmes caros e longos, e também dos filmes mutilados. Nunca se conheceu um filme dele que não tenha sido remontado e, segundo suas palavras, arruinado. Greed/Ouro e Maldição, de 1923, tinha, na versão dele, 42 bobinas, que foram reduzidas para 24, 15 e 10. Mesmo com menos de um quarto da metragem que Stroheim considerava ideal para contar sua história, foi muitas vezes votado como um dos melhores filmes de todos os tempos.

Encerrada a carreira de diretor, por falta de patrocínio para seus excessos, Stroheim virou ator — de Jean Renoir em A Grande Ilusão, de Billy Wilder em Sunset Boulevard/Crepúsculo dos Deuses. No último, fazia o outrora diretor convertido em mordomo da lendária estrela Norma Desmond, interpretada pela não menos lendária Gloria Swanson. Muita gente só conhece dele o filme dentro do filme de Wilder, que o cineasta usa para ilustrar a frase de Norma, quando diz que já foi grande, os filmes é que ficaram pequenos. São imagens de Queen Kelly/Minha Rainha, de 1928, um filme antigo de Stroheim que foi, claro, remontado e arruinado. Durante décadas, e o filme de Wilder contribuiu para isso, criou-se o mito de Queen Kelly como filme maldito. Somente em 1985, uma versão restaurada conseguiu ser mostrada ao público, mesmo assim, incompleta — faltavam cenas inteiras que não chegaram a ser filmadas ou se perderam, preenchidas por fotos de rodagem e letreiros.

Gloria Swanson e Walter Byron em cena de 'Queen Kelly/Minha Rainha', de 1932 Foto: The Gloria Swanson Archive

PUBLICIDADE

A sinopse do filme é típica da extravagância associada ao autor. Uma rainha louca, que anda nua pelo palácio. Seu primo e noivo, que prefere a companhia de profissionais do sexo. (Stroheim lixava-se para as Ligas de Decência.) Numa parada, ele conhece uma noviça. É uma freirinha, Kitty Kelly. Apaixona-se, e a rainha os separa. A pobre moça, expulsa do convento, volta à casa da tia, que está morrendo (e é dona de um bordel). Kitty herda o bordel, vira Kelly e, anos mais tarde, reencontra seu príncipe, que, como já foi dito, prefere as prostitutas e reinicia o affair. A rainha é deposta num movimento popular, o marido sobe ao trono. Kelly é feita rainha com ele. O filme oferece uma súmula das obsessões de Stroheim. Mutilados, oficiais pervertidos, mocinhas estupradas, romances ao luar, tudo regado a sensualidade e muito cinismo.

Gloria Swanson é Kelly e Seena Owen, a Rainha Regina. Ficou célebre a cena em que Regina expulsa Kitty do palácio a chibatadas, e Gloria queixava-se de que Stroheim, em nome do realismo de cena, fez com que apanhasse de verdade. O mais curioso dessa história é que o filme foi produzido por Joseph Kennedy, pai do futuro presidente John F. Kennedy. Todo mundo conhece a tradição católica da família Kennedy, mas, assim como o filho, o pai já era mulherengo. Gloria Swanson era sua amante e ele produziu o filme para ela, investindo um dinheirão na produção que deveria durar mais de cinco horas.

Publicidade

Grande estrela da época, Gloria controlava os filmes de que participava, e escolhia atores medíocres para se assegurar de que brilharia sozinha. O príncipe de Minha Rainha é um dos sujeitos mais inexpressivos que já representaram diante de uma câmera, Walter Byron. Conta a lenda que Stroheim tiranizava Seena Owen e Byron, mas bajulava Gloria. Lá pelas tantas, ela se cansou do diretor que refilmava cenas e planos até deixá-la exausta. A gota d'água foi uma cena de beija-mão, em que o ator, a pedido de Stroheim, babou na mão da estrela. Ela teve uma crise e exigiu de Kennedy pai que despedisse o cineasta.

O filme foi interrompido, e outros diretores, contratados para encerrar a obra, não conseguiram resolver o imbróglio. Finalmente, o filme foi terminado de qualquer jeito. Para aproveitar o material extenso, Kitty cai no lago, morre afogada — não é piada — e o príncipe se suicida. Demência pura, mas a beleza do material que sobreviveu esculpiu a fama de clássico do filme. Para encerrar, e em homenagem a Stroheim, austríaco como ele, Wilder pediu-lhe que dirigisse a antológica cena final de Sunset Boulevard, em que Norma/Gloria se prepara para o close de Mr. (Cecil) B. De Mille.

Onde assistir:

  • Disponível em versão não oficial no Youtube

Publicidade

 

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.