Aristocrata de nascimento e marxista por convicção, Luchino Visconti era criador de cavalos, e parecia que seria sua vocação. Nos anos 1930, tornou-se amigo de Coco Chanel em Paris, e Mademoiselle apresentou-o a Jean Renoir, de quem ele foi assistente em Toni, de 1934. Oito anos mais tarde, e seduzido pelo realismo do filho do pintor impressionista Auguste Renoir, o próprio Visconti tornou-se diretor, antecipando o neorrealismo com sua adaptação do romance de James Cain, O Destino Bate à Sua Porta, em Obsessão. O resto é história. Visconti permaneceu neorrealista em La Terra Trema, de 1948, mas foi dos primeiros a distanciar-se do movimento com Senso/Sedução da Carne, de 1954, pela dupla via da (grande) História, recriando a célebre batalha de Custoza, e do melodrama.
Diretor de teatro e cinema, apaixonado por ópera, Visconti fazia um cinema que os críticos e ele próprio chamavam de antropomórfico e no qual a câmera se dirigia basicamente para o corpo do ator. Essa tendência teve seu ponto mais alto em Rocco e Seus Irmãos, de 1960. Ao longo da década, Visconti assimilou a lente zoom e ela terminou por influenciar (e mudar) sua mise-en-scène.
Rocco concorreu em Veneza. O júri preferiu atribuir-lhe o Leão de Prata, outorgando o de Ouro para o francês André Cayatte, por seu drama de guerra A Passagem do Reno, um filme que, com boa vontade, pode ser classificado de 'médio'. Visconti e seus roteiristas (Suso Cecchi D'Amico, Enrico Medioli, a dupla Campanile/Franciosa) inspiraram-se num relato curto de Giovanni Testori, A Ponte da Ghisolfa. Acrescentaram melodrama, ópera, o verismo do meridional Giovanni Verga, um escritor siciliano que o diretor sempre quis adaptar, e o resultado é um clássico.
O filme funde duas grandes vertentes, a crônica familiar e a crítica do código de honra caraterístico da Itália mais primitiva, a do Sul. Começa numa estação de trens, com a chegada de uma mãe e seus quatro filhos a Milão. A cidade já era, e permanece, o coração econômico da Itália. Rosario Parondi chega para se juntar ao filho mais velho, que veio tentar a sorte na cidade grande. O ato, em si, já revela ousadia. Equivale a um rompimento com a estrutura feudal que ainda permanece em Matera, Potenza, de acordo com uma história que Rocco/Alain Delon conta, sobre como uma revolta de trabalhadores foi sufocada a ferro e fogo.
Rocco é o irmão do meio – dois mais velhos que ele (Simone e Vicenzo), dois mais novos (Ciro e Luca). A mãe vangloria-se – cinco filhos, unidos como os dedos da mão, mas não por muito tempo. Na crônica viscontiana, a família desintegra-se. Simone, qual ovelha negra, liga-se a más companhias, termina impactado pela violência do mundo do boxe, mas o grande fator de ruptura é o desejo atormentado – o amor? –, que Rocco e Simone/Renato Salvatore sentem pela prostituta Nadia/Annie Girardot. Rocco, como diz Ciro, é um santo. Resgata Nádia e ela tenta mudar de vida, mas o embrutecido Simone cobre Rocco de pancada e ainda estupra a mulher, com base no código de honra meridional.
O relato divide-se em cinco capítulos, cada um dedicado a um dos irmãos, e todos compõem o arco da história. Vicenzo casa-se e não pode arcar com a manutenção da família. Simone fracassa no boxe e segue a via da degradação. Ciro vira operário especializado, com, consciência de classe, na Alfa Romeo. Olha o spoiler – Simone mata Nadia e Rocco, tentando proteger o irmão, a família, mas antes que isso aconteça já se comprometeu como pugilista. Vence e chora. O amor transformou-se em ódio para ele.
Visconti quis fazer seu filme segundo preceitos marxistas. Ciro seria, e é, o mais consciente dos irmãos, mas o coração do diretor bate mais forte pela bondade de Rocco, mesmo consciente de que ela carrega a própria condenação. Há 60 anos, em outro momento – anterior à derrocada do comunismo e da ascensão do neoliberalismo econômico –, Visconti encerra o filme com o mais breve dos capítulos, dedicado a Luca, o mais jovem dos irmãos. Havia, naquele tempo, o sonho de lutar por uma sociedade mais justa, em que a terra fosse compartilhada. Na ficção viscontiana, narrada por Ciro, Luca voltará ao paese, nessa época futura – sonhada? – em que os Roccos, os Simones, os Vicenzos e os Ciros não precisarão mais sair de sua vizinhança em busca de pão e liberdade.
Rocco e Seus Irmãos possui algumas das mais belas (e intensas) cenas filmadas. O diálogo de Rocco e Nadia, quando ele deixa o quartel e abre seu coração para a prostituta, que encontra nele um tipo de compreensão como nunca conheceu antes; o estupro, a briga a socos dos irmãos e o rompimento de Rocco e Nadia no alto do Duomo, a catedral de Milão; a refeição familiar, após a vitória de Rocco no ringue, quando Simone chega para comunicar que matou Nadia. A cena leva os sentimentos ao ponto de combustão. A mãe blasfema, ergue as mãos pra o alto e brada contra Deus. É uma cena tão forte que tem gente que não aguenta – ri de nervosismo.
Todo o elenco reunido por Visconti é excepcional, mas Delon, Salvatori, Annie e a grande trágica grega Katina Paxinou, que faz a mãe, apresentam interpretações que estão entre as melhores da história do cinema. Os coprodutores franceses tentaram impor Brigitte Bardot como Nadia. Visconti bateu pé. Sem a Girardot, não haveria filme. Ele havia dirigido a atriz no teatro, em Paris, e estava certo de que ela faria a personagem com alma. Um detalhe – quando Rocco volta para casa, após servir o Exército, a placa na porta do apartamento diz que é da família Pafundi. A censura na Itália perseguiu o filme pela violência – as mais de 30 facadas em Nadia. O promotor que tratava do caso era Pafundi. Ameaçou interditar o filme em Veneza. Visconti dublou o nome e os Pafundi viraram Parondi.
Onde assistir:
- Belas Artes à la Carte
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