É tudo muito estranho, bizarro. Em Veludo Azul, de David Lynch, de 1986, Jeffrey (Kyle MacLachlan) descobre uma orelha humana e a câmera de David Lynch penetra no orgão decepado, num movimento alucinante que vem acompanhado de ruídos dissonantes. Mais tarde, Sandy, a estreante Laura Dern, que se junta a Jeffrey para tentar descobrir de quem é a orelha, começa a falar compulsivamente e Lynch, de novo, faz um movimento de câmera – para essa boca que parece a do inferno.
Quando fez o filme, Lynch já ostentava a fama de cineasta experimental – por seus curtas de animação e também pelo longa de estreia, Eraserhead, sobre um feto grotesco (e falante). Mesmo assim, Veludo Azul marcou um divisor de águas para o autor. Foi amado, como bizarro e brilhante, e rechaçado, como de a mau-gosto e doentio, com igual intensidade, mas o culto a Lynch estava lançado. Em 1990, com Twin Peaks, foi dos primeiros a iniciar a revolução na TV dos EUA. Confirmou-a com Twin Peaks, O Retorno, há três anos.
De cara, Veludo Azul cria o que parece o mundo perfeito. Um homem rega o jardim e a casa, com sua cerca branca, as flores, as cores, até o fundo musical adocicado, tudo é bom demais para ser verdadeiro. Tem um carro de bombeiro, mas a sensação é de que está deslocado – por quê? Para quê? Será uma advertência contra o fogo das paixões que o filme vai abordar em seguida? Quem rega as plantas é o pai de Jeffrey. Sofre um ataque e cai no gramado e a câmera penetra no microcosmo desse pedaço da América – a surburbia – para mostrar os insetos que se entredevoram sob o verde do gramado. Quando a câmera volta à superfície, algo grave se passou. A paralisia do pai introduziu uma crise de autoridade que vai colocar em xeque toda essa aparência de ordem e equilíbro, liberando o descontrole para os instintos primitvos que vão predominar na narrativa.
Há uma relação entre incesto e o pai ausente do começo, e ela se torna dominante nesse período de desordem em que predominam as paixões desenfreadas, arrastando o filme dos domínios do dia para os da noite.
A investigação policial de Jeffrey e Sandy transforma o rapaz, escondido no armário, em voyeur da cena de sexo entre a cantora de cabaré Dorothy (Isabella Rossellini) e Frank (Dennis Hopper). Isabella, filha de Ingrid Bergman e Roberto Rossellini, está belíssima (e canta o tema Blue Velvet, de Bernie Wayne e Lee Morris). Hopper faz um daqueles personagens monstruosos, um sádico que mantém a mulher sob seu controle bestial pelo simples fato de estar ameaçando seu marido e filho.
Por meio de Frank, e da antinomia que se estabelece com Jeffrey, Lynch toca o tema de Veludo Azul – os temores mais ocultos e sombrios que devoram o coração dos homens. A perversão de Frank representa um desejo reprimido no Id de Jeffrey, do qual ele só conseguirá se libertar pela destruição do outro, o que termina ocorrendo no desfecho violento, do qual Jeffrey emergirá como novo homem. Mas, cuidado, tudo o que Lynch não fez foi um thriller com direito a redenção, e final feliz.
São evidentes certos signos que remetem ao mestre do suspense Alfred Hitchcock – Dorothy fala com o filho por meio de uma porta fechada, referência a Psicose, de 1960. Um cortina agita-se – que perigo está ocultando? De novo, Psicose. Resolvida a parada, Lynch introduz nova perturbação – Dorothy olha para o filho e o rosto luminoso vai se fechando, como se sua submissão aos ritos sádicos de Frank não fosse somente para salvaguardar a cria. O pássaro, símbolo do amor, carrega um inseto no bico, o que não deixa de ser uma volta ao começo canibalesco, ao jardim que não é do Éden.
Lynch muitas vezes recorreu a estruturas narrativas de filme policial. Basta lembrar do enigma de quem matou Laura Palmer, em Twin Peaks. Veludo Azul desconcerta também pelas cores, carregadas e artificiais, como o azul do roupão na hora do estupro de Dorothy. O que seria dessa fábula adulta sem as ferramentas de abordagem do inconsciente fornecidas pela psicanálise?
Lynch usa uma via tortuosa para mostrar que está invocando o Dr. Freud. Quando Sandy conversa pelo telefone com Jeffrey, a foto de Montgomery Clift está ali para lembrar que o astro foi o Freud, Além da Alma, de John Huston (em 1962). Só para constar. Veludo Azul, um dos filmes mais importantes dos anos 1980, concorreu em apenas uma categoria no Oscar de 1987 – melhor diretor. Por mais impressionante que seja, Dennis Hopper foi indicado somente no Globo de Ouro de melhor coadjuvante, e perdeu. Dean Stockwell, que não impressiona menos – como o parceiro de Hopper –, não concorreu a nada, em lugar nenhum. Ele canta In Dreams, de Ray Orbison, tão importante quanto Blue Velvet, na trama.
Onde assistir:
- Looke
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