Coleção dedicada ao filme noir destaca obras de cunho social

O sétimo volume da série lançada pela Versátil traz, entre outros títulos, o curioso 'A Noite de 23 de Maio', de John Struges

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio

O novo volume da Coleção Noir da Versátil, o de n.º 7, traz algumas obras-primas do gênero, como Almas Perversas, de Fritz Lang, e Cinzas que Queimam, de Nicholas Ray. Ainda assim, o espécime mais curioso é A Noite de 23 de Maio, de John Sturges, filme poucas vezes associado ao gênero, mas que, de fato, reúne condições de constar em uma caixa de DVDs a ele dedicado. Sturges, ele próprio, é nome mais ligado ao faroeste, mas, claro, como autor no domínio de sua ferramenta de trabalho, dá-se bem, da mesma maneira, nas histórias urbanas. E esta contém alguns dos ingredientes essenciais do noir, embora distorcidos de certa maneira, o que torna o filme bastante original. 

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Em A Noite de 23 de Maio, temos elementos como o crime cometido, o desaparecimento de um corpo, um falso culpado e uma investigação. Só que esta se dá de maneira pouco usual no noir. Esse é um gênero, digamos, pouco intelectual, pelo menos no sentido mais explícito. Ele se estrutura mais na psicologia e nos dramas dos personagens que em grandes exercícios de dedução lógica. 

Pois bem, temos as duas coisas em A Noite de 23 de Maio. A história é a de uma garota de programa envolvida com um homem rico e que deseja livrar-se dela, pois teme ser chantageado. Um rapaz deixa esposa no hospital e sai pela noite, cheio de culpa, tornando-se presa fácil no meio de marginais e das moças de vida airosa, como dizia Nelson Rodrigues. Há um investigador obstinado, mas com problemas de rejeição social (é latino). E um professor universitário com grandes poderes de raciocínio lógico, aquele tipo que sabe “fazer falar” um corpo encontrado. Mesmo que os restos mortais se resumam a um esqueleto e, ainda assim, incompleto. 

Não por acaso, o filme é dedicado à Universidade Harvard. É a essa instituição que os investigadores recorrem quando encontram o tal esqueleto e não têm a menor ideia de sua identidade. O professor de ciência forense, interpretado por Bruce Bennett, mostra-se capaz de, apenas pela análise dos ossos, dizer idade, profissão, causa provável e data da morte, além de outros detalhes que possibilitam a montagem do quebra-cabeças. 

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Não menos fascinante é o investigador vivido por Ricardo Montalban. Ele é um desses tiras obcecados, mas, ao mesmo tempo, batalha pela aceitação em uma sociedade preconceituosa, embora, como faça questão de dizer, sua família, de origem hispânica, esteja nos Estados Unidos há mais de cem anos. Pouco importa. O sobrenome e a cor da pele um tanto diferentes dos usuais impõem ao portador o fardo de provar seu valor a cada dia. Esse traço da civilização norte-americana não escapa ao olhar agudo de Sturges. E esses pequenos detalhes é que fazem de A Noite de 23 de Maio um noir atípico e digno de interesse até hoje. A produção é de 1950. A caixa ainda se completa com Tensão, de John Berry, Justiça Injusta, de Cid Endfield, e A Taberna do Caminho, de Jean Negulesco. 

Uma palavra geral sobre essa coleção da Versátil: ela resgata e coloca ao alcance do cinéfilo um dos gêneros cinematográficos mais importantes. O noir pode ser visto como cinema americano com consciência social. Muito da sua estética expressionista se deve à massa de artistas europeus que emigrou para os Estados Unidos em fuga do nazismo e empregou-se na indústria de Hollywood. Seus temas noturnos, a fotografia contrastada, os faróis dos carros contra o asfalto molhado, os bares sórdidos, a violência, os homens durões e, muitas vezes, a presença da femme fatale. 

Toda essa ambiência e escrita cinematográficas definem o mundo do noir. Mas a circunstância social é predominante. Se a linha narrativa em geral fala de um crime a ser desvendado, o ambiente em que se dá essa enquete é o que importa mais. Uma sociedade de predadores, sem piedade para com os fracos, em que trapaceiros são mais bem equipados que os honestos, fornece o sumo desse gênero destinado ao público adulto. O cinema se infantilizou demais de lá para cá. 

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