Faz mais de 50 anos que saiu no Brasil a primeira edição do livro de Horace McCoy. A editora era a Globo e o tradutor, Érico Veríssimo. O livro foi relançado no fim dos anos 60, aproveitando o impacto do filme de Sydney Pollack. Ganha agora outra tradução, em outra editora. Com todo respeito pelo trabalho de Renato Pompeu, não será fácil para ele competir com o grande Érico, o maior romancista do Rio Grande e um dos maiores do Brasil. Mas Não se Matam Cavalos?, o livro virou A Noite dos Desesperados no Brasil, tanto o romance como o filme. Diante das banalidades da produção recente de Pollack - o thriller A Firma, a comédia romântica Sabrina -, você é capaz de nem acreditar, mas ele fez um belo trabalho em A Noite dos Desesperados. Tem a ver com a época, a atriz, com tudo. O fim dos anos 60, com a radicalização do espírito revolucionário de Maio de 68, foram essencialmente contestadores. E Jane Fonda era a mais bela imagem da contestação no cinema. Ela vinha de uma carreira como mito erótico no cinema europeu, nos filmes dirigidos por seu então marido, Roger Vadim. A Ronda do Amor, O Jogo Perigoso do Amor, o episódio Metzengerstein de Histórias Extraordinárias e, principalmente, Barbarella esculpiram o mito da mulher sexy. De volta aos EUA, a erotizada Jane descobriu a política. Militava na tela e fora dela. Mais tarde, casou-se com Ted Turner e passou a viver mais preocupada com a aeróbica do que com a política. Fazer o quê? Chorar pela velha Jane revolucionária, talvez. Como a desse filme. Chorar por Pollack, que também já foi grande. Foi - um tempo passado, um sentimento, uma nostalgia. Pollack foi mesmo grande na época em que fez a adaptação de McCoy e, logo em seguida, o western Mais Forte Que a Vingança, com o astro Robert Redford no papel de Jeremiah Johnson, o lendário ermitão da montanha que enfrentou sozinho os índios crow. Mais Forte Que a Vingança foi a fonte em que bebeu Kevin Costner para fazer Dança com Lobos, no tempo em que era bom. Mas o filme de Pollack é melhor. Com Jeremiah Johnson e, antes desse filme, com A Noite dos Desesperados, Pollack propunha uma personalidade vigorosa, uma autoria que terminou diluindo, a seguir. Os dois filmes o colocam na fronteira da civilização. É um esteta e um humanista, um civilizado que se horroriza tanto com a brutalidade que descobre na história de McCoy quanto na de Jeremiah Johnson. A saga desse último, o caçador que abandonou a civilização para levar uma existência solitária na montanha, poderia ser um veículo para que ele buscasse a recuperação da barbárie e do orgulho como as virtudes supremas do indivíduo, ou olhasse esse mesmo indivíduo como o momento superior da raça. Isso é o que teria feito o roteirista de Mais Forte Que a Vingança, o também diretor John Milius, mas não Pollack. Na saga de Jeremiah Johnson, o matador de crows, ele viu a possibilidade de concretizar não uma vingança mas uma reflexão sobre a impossibilidade de haver, nesse mundo, um lugar onde o homem possa se esconder dos compromissos e conflitos básicos da existência. É uma idéia que fecha com a a adaptação de McCoy. Pollack transformou um romance duro, cínico e brutal num lamento pela América que se prometia como um grande baile e era apenas uma dança louca para ganhar um punhado de dólares. A loucura que move Gloria e Robert, os personagens de Jane Fonda e Michael Sarrazin em A Noite dos Desesperados, no fundo é a mesma que impulsiona Jeremiah, interpretado por Robert Redford, à sua guerra solitária. É uma circunstância, o resultado de um súbito e inesperado desafio da realidade que os personagens tratam de enfrentar com os meios ao seu alcance. Glória e Robert aceitam o grau de demência que a sociedade lhes impõe e isso é que faz a dor do filme, o seu final de impacto. Um cinema na fronteira da civilização, que mostra como ela se constrói no fio da barbárie. A Noite dos Desesperados passa-se durante a depressão econômica dos anos 30, nos EUA. Não há emprego, as pessoas sujeitam-se a qualquer coisa para sobreviver. Glória e Robert participam de uma maratona de dança. Não é um concurso para ver quem dança melhor, é um teste de resistência para ver quem consegue ficar mais tempo de pé. Por isso mesmo as duplas iniciam o filme dançando e terminam, pateticamente, com seus integrantes amparando-se uns nos outros, lutando para manter-se de pé, independentemente do cansaço e até da fome. É um universo derrisório, mais do que sórdido, no qual o meneur du jeu, o animador da festa - interpretado por Gig Young, que ganhou o Oscar de coadjuvante -, termina fazendo as vezes de cínico e de bad guy, ao insistir em vender, com slogans, palavras de ordem em que ninguém mais acredita nesse mundo que se desintegra. O salão e a própria maratona são representações da vida, microcosmos em que miríades de tramas e personagens se misturam ou entram em choque. São vários esses personagens, mas o foco está em Glória e Robert, a garota destrutitiva e o rapaz manipulável, ambos convergindo para o desfecho trágico que dá sentido à pergunta que McCoy colocou no seu título - mas não se matam cavalos? A sociedade que mata cavalos equipara as pessoas a animais. É contra isso que McCoy, no livro, e Pollack, no cinema, se insurgem. Talvez alguém pudesse pensar que o filme, tão alicerçado no espírito contracultural da época, poderia, quem sabe, resistir mal ao tempo. Não foi o que ocorreu. As últimas reprises de A Noite dos Desesperados na TV - e faz algum tempo que o filme, infelizmente, não passa - confirmaram que se trata de uma obra de rara potência. Dramaturgia e imagens não perderam nada de sua força. E Jane é esplendorosa. Foi indicada para o Oscar pelo papel. Perdeu para Maggie Smith (por A Primavera de uma Solteirona), mas ganhou depois, duas vezes, o cobiçado prêmio - por Klute, o Passado Condena, de Alan J. Pakula, e Amargo Regresso, de Hal Ashby. Por melhor que seja nesses dois filmes, fica a sensação de que a academia não a reverenciou quando mais merecia.