A primeira cena de terror é a seguinte: você sai de casa em um sábado à noite e os cinemas estão completamente dominados por filmes de super-heróis de Hollywood. De dez salas, nove estão passando Homem-Castor 3, e a outra tem uma comédia sem graça exigida pelo estúdio americano dono da franquia imaginária do castor. Não há opção para você - cinema brasileiro, nem pensar. Não existe liberdade.
A segunda cena de horror é diferente: filmes brasileiros têm espaço garantido e obrigatório nas salas. Na sua saída de sábado, você nota que Homem-Castor 3 ainda está lá, mas perdeu espaço para dramas nacionais com orçamento baixo e pouco apelo. Não há opção para o público, nem para o exibidor - é preciso cumprir a cota. Não existe liberdade.
Os cenários fictícios ilustram, com exagero, os argumentos contra e a favor das cotas de telas para produções nacionais em uma discussão antiga, mas que voltou a esquentar no Brasil. Os produtores e artistas temem o primeiro cenário. Os exibidores dizem ter pesadelo com o segundo - que nunca ocorreu de fato, mesmo com as cotas em vigor. Curiosamente, ambos defendem a liberdade do público, com soluções opostas.
Os cenários são extremos, mas é claro que a realidade tem mais nuances. O Estadão explica o debate, e como ele pode mudar sua programação de sábado à noite.
Mas, antes, a explicação: o que é essa cota, afinal? A cota de tela consiste na garantia de uma ocupação mínima do cinema brasileiro no mercado exibidor nacional. A medição costuma ser feita por dias de exibição no ano, além de uma porcentagem máxima que obras estrangeiras possam ocupar, sozinhas, nas salas de cinema. A quantia chegou a expressivos 112 dias de cinema brasileiro em 1964, mas em 2011, atingia apenas 28 dias de conteúdo nacional por sala.
Esta quantia é debatida com profissionais da indústria e precisa ser validada anualmente, por decreto presencial. Em 2021, a determinação da cota de tela expirou, no entanto, o governo anterior não a renovou, tornando esta proteção ao cinema obsoleta deste então.
E quais são os novos lances? A demanda de produtores de audiovisual brasileiros teve um revés recente: o retorno das cotas de tela para salas de cinema foi descartado, por ora, pelo Senado Federal. Apesar do pedido de urgência por parte do autor do projeto, o senador Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), e do endosso da Ministra da Cultura, Margareth Menezes, as salas de cinema foram retiradas da discussão após emenda do senador Eduardo Gomes (PL-TO). Apenas a cota de tela para a televisão paga seguiu para votação.
A decisão provocou fortes reações da indústria cinematográfica, que considera a medida uma das principais ferramentas para a proteção das obras nacionais. A lei das cotas, elaborada nos anos 1930, impõe um número mínimo de dias em que as salas de cinema são obrigadas a exibir o conteúdo nacional. Baseado em estudos publicados pela Ancine, o novo projeto de lei buscava garantir, inclusive, que o filme nacional estivesse disponível em horário nobre (a partir das 17h) e que títulos premiados em festivais tivessem garantia de exibição.
“Esse projeto atualiza a legislação de vinte anos atrás. O nível da produção brasileira era outro, e o tipo de concorrência, também, porque foi uma legislação pensada para a era pré-digital”, explica Ana Paula Sousa, pesquisadora e autora do livro O Cinema que não se vê: a guerra política por trás da produção de filmes brasileiros no século XXI.
“Outros países do mundo também adotam este instrumento clássico de reserva de mercado. Nas últimas versões, a cota de tela no Brasil girava em torno de 10% do mercado. É uma cota pequena, destinada à sobrevivência do cinema brasileiro”, sublinha Marcelo Ikeda, pesquisador e autor do livro Cinema brasileiro a partir da retomada: aspectos econômicos e políticos.
Uma questão urgente, porém antiga
No entanto, os mesmos especialistas que concordam com a necessidade da cota de tela emitem ressalvas ao projeto em forma ou conteúdo.
“Historicamente, temos políticas de fomento para a produção, mas não temos nada equivalente para a criação, nem uma garantia de que essas obras cheguem ao público. Precisamos criar um mercado consumidor”, lembra Luciana Rodrigues, professora em Legislação Audiovisual e Coordenadora de Pós-Graduação em Gestão de Produção e Negócios Audiovisuais.
“Além disso, se não houver fiscalização, as cotas de tela na sala de cinema não servem para nada”, ela prossegue. “Precisamos de uma fiscalização efetiva, e de investimento em divulgação”.
“Seria importante não apenas a aprovação da cota, mas que ela seja uma norma da Ancine, ao invés de um decreto anual”, acrescenta Ikeda. O senso comum aponta a qualidade dos filmes como único fator de sucesso ou não do projeto. Mas ele ressalta: “Muitas vezes os filmes brasileiros possuem alta qualidade artística e forte potencial comercial, mas não conseguem a penetração de mercado, porque existe um bloqueio. Quando um único filme, independentemente da nacionalidade, ocupa mais de 80% das salas de cinema, isso produz fortes indícios de uma concorrência predatória”.
Ana Paula Sousa, por sua vez, relembra que “isso começou a ser discutido na Ancine em 2017, e de repente o projeto é lançado em regime de urgência. É natural que gere uma reação dos exibidores, que são diretamente atingidos pela cota de tela. A possibilidade de esta ferramenta deixar de existir é inadmissível. Mas a cota de tela para a sala de cinema não resolve, sozinha, todas as grandes questões do audiovisual brasileiro hoje”.
A resposta dos exibidores
O exibidores representam o setor que se opõe de maneira mais forte ao atual projeto de lei. Marcos Barros, representante da Associação Brasileira das Empresas Exibidoras Cinematográficas Operadoras de Multiplex (Abraplex), declara que não seria contrário, em princípio, à cota:
“Somos totalmente favoráveis ao crescimento da indústria brasileira. Mas não estamos discutindo se o produto brasileiro está sendo bem escolhido, de forma a gerar interesse nos consumidores. Não estamos discutindo se o calendário de lançamentos, ou a campanha de marketing estão corretos. Mesmo assim, dizemos que o exibidor é obrigado a passar o filme, dando público ou não. Ele não tem nenhuma segurança caso a produção e a distribuição não tenham feito a sua parte direito”.
Barros questiona a eficácia da cota de tela. “Alegam que a falta da cota de tela fez o market share [a porcentagem de ingressos vendidos para filmes brasileiros, em comparação com os estrangeiros] deste ano ser tão baixo. Tivemos vinte anos de cota de tela. No ano 2000, nosso market share foi de 10,6%. Depois de vinte anos, tivemos apenas 12,5%. O crescimento foi apenas de 2,5% em vinte anos, com milhões e milhões de reais em incentivo para a produção. Dinheiro a fundo perdido foi destinado ao desenvolvimento do filme brasileiro”.
Para o porta-voz dos exibidores, o produto brasileiro tem condições de concorrer em igualdade com o estrangeiro: “Os dados provam isso. Nós tivemos Minha Mãe É uma Peça 3, por exemplo. Em vários anos, o filme brasileiro empurrou o norte-americano”.
Questionado a respeito da disparidade de investimento em marketing entre os produtos nacional e internacional, responde: “Isso é problema da produção e da distribuição. Não é responsabilidade dos exibidores se o cinema brasileiro tem ou não dinheiro para fazer o marketing. Vamos lutar então para melhorar o marketing”.
Barros também fala sobre o caso do filme De Pernas pro Ar 3. A comédia com Ingrid Guimarães tinha ótima participação de público em 2019, quando foi retirada das salas de cinema para a chegada de Vingadores: Ultimato. “O mercado é assim. Missão Impossível: Acerto de Contas - Parte I foi retirado do mercado brasileiro exatamente como De Pernas pro Ar 3, porque existiam dois maiores entrando: Barbie e Oppenheimer. O exibidor precisa pôr aquilo que o público quer assistir. Se está entrando um filme com campanha de marketing grande e forte projeção de faturamento, você é obrigado a retirar aquele que fatura menos para colocar o outro. Fazemos isso com filme estrangeiro e nacional. São as regras do mercado”.
E as nuances...
Os defensores das cotas também usam a liberdade como argumento. “Dizem que as pessoas deveriam ver os filmes que quisessem no cinema. Mas o objetivo das cotas é justamente estabelecer a liberdade de expressão e a defesa da concorrência, para que obras fora deste formato hegemônico possam existir. A cota não restringe a escolha, pelo contrário, ela abre a possibilidade de se descobrir o nosso audiovisual”, ressalta Marcelo Ikeda.
Luciana Rodrigues expande o raciocínio: “Eu não tenho escolha de decidir o que vou ver no cinema, porque não existe diversidade. Toda vez que se retiram filmes brasileiros das telas, impede-se uma parte do público de ir ao cinema. Se eu já vi Barbie e Oppenheimer, vou ver o quê? Não sobrou mais nada. Então acabo não indo ao cinema”.
“Com a crise da pandemia, o fechamento das salas e a chegada das plataformas, o investimento no lançamento dos filmes se tornou mais arriscado. O distribuidor tem o receio de investir muito num lançamento porque o público diminuiu. Não é só o público do cinema brasileiro”, rebate Ana Paula Sousa. Por isso, “o cinema brasileiro precisa da cota, mas também de um processo de resgate do interesse das pessoas por ele”.
Eles apontam algumas medidas capazes de aumentar o interesse do público pelo cinema nacional: o estímulo dos filmes brasileiros nas escolas, baseando-se no modelo da França; investimento Estadual em marketing e divulgação dos filmes nacionais, e, sobretudo, a imposição da cota de tela para o streaming, de modo que as plataformas também sejam obrigadas a exibir o conteúdo nacional.
“Quando um filme é distribuído nas salas de cinema, ou na televisão, ele paga um valor. Mas quando é exibido nas plataformas de streaming, não. É preciso regular a Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional) no streaming”, considera Ikeda. “Este recurso abastece o Fundo Setorial do Audiovisual, que fornece então recursos para o financiamento de outras obras do audiovisual brasileiro independente”.
A regulação urgente dos players consiste no ponto em que todas as vozes convergem. Os exibidores também clamam por esta discussão: “O que financia hoje a indústria do audiovisual brasileiro é a Condecine, e o streaming aproveita de todo o nosso conteúdo, sem pagar absolutamente nada. Não tem o menor sentido, ele precisa ser regulado da forma mais urgente possível”.
Resta, no entanto, uma ressalva: “Já criticaram o fato que a Netflix não paga a Condecine. Mas o Estado brasileiro não decidiu de que maneira ela deveria pagar a contribuição. Estas empresas fazem lobby, é claro, mas nestes quatro anos de pandemia, e de revolução nos hábitos de consumo, na distribuição e na exibição audiovisual, tivemos um governo que se recusou a olhar para o setor. Ele apenas atacava, de maneira difusa. Ficamos quatro anos sem que nada disso fosse resolvido. A culpa não é dos players em si”, finaliza Ana Paula Sousa.
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