Como a imagem da explosão atômica assombra o cinema - e volta em ‘Oppenheimer’ e ‘Asteroid City’

Há sete décadas ‘cogumelo’ é referência em histórias que reforçam e banalizam a ansiedade nuclear. Ela volta em trecho mais impressionante de ‘Oppenheimer’ e cena irônica de ‘Asteroid City’

PUBLICIDADE

Por Nicolas Rapold

THE NEW YORK TIMES - Testemunhas do teste Trinity, o experimento inaugural da bomba atômica em 1945 retratado em Oppenheimer, descreveram a explosão de várias maneiras. Disseram que se assemelhava a uma chaminé, um guarda-sol, uma framboesa e - com tons de ficção científica - um “cérebro complexo”. O físico Enrico Fermi e outros compararam a nuvem que se elevara furiosamente no deserto do Novo México a um cogumelo, e esta se tornou a forma que hoje é, inevitavelmente, associada às explosões nucleares.

Detonação de uma bomba atômica durante os testes nucleares realizados em 25/7/1946, no Atol de Bikini. Foto: Departamento de Defesa dos EUA /Domínio Público

PUBLICIDADE

A imagem duradoura da nuvem de cogumelo assumiu diferentes significados ao longo das décadas, refletindo fantasias e medos à medida que crescia e florescia na cultura americana - mais recentemente, na tela de Oppenheimer e Asteroid City. A multiplicidade de significados cai bem a uma arma que foi parcialmente concebida, para começo de conversa, como uma demonstração simbólica para coagir o Japão a se render na Segunda Guerra Mundial.

Assim que a nuvem apareceu, ela rapidamente representou aquele momento decisivo da história. No início dos testes nucleares no Atol de Bikini em 1946 - projetados para medir os efeitos de tais explosões em navios de guerra - um repórter se referiu ao cogumelo como “o símbolo comum da Era Atômica”. Em recepção para comemorar a primeira rodada de testes, o comandante da operação, vice-almirante William H.P. Blandy, até cortou um bolo em forma de explosão de cogumelo.

Do Armagedom à decoração da sobremesa em pouco mais de um ano: a rápida progressão captura a dualidade maravilha-horror que a bomba provocou. Por um lado, a forma imponente alimentava facilmente um orgulho militar e chauvinista. Que outro instrumento de guerra deixava uma marca registrada no céu? Por outro, provocava puro terror com sua visão de destruição divina afunilada diretamente para os céus. O copiloto do bombardeiro Enola Gay se expressou de maneira mais sucinta: “Meu Deus, o que fizemos?” - palavras que J. Robert Oppenheimer ecoou com sua famosa citação do Bhagavad Gita: “Agora me tornei a Morte, a destruidora de mundos”.

Cena de teste nuclear em 'Oppenheimer' Foto: Universal Pictures

E, no entanto, algo tão novo e deslumbrante não poderia deixar de entrar na cultura popular. Se o teste de Bikini inspirou o nome de um maiô, então é claro que a nuvem de cogumelo seria considerada uma peça de marketing empolgante.

Publicidade

Algumas rainhas da beleza foram destacadas como “Miss Bomba Atômica” e coisas do gênero, usando chapéus ou roupas de banho em forma de cogumelo, parte de uma moda geral do kitsch atômico (conforme narrado de forma memorável no documentário The Atomic Cafe). A Câmara de Comércio de Las Vegas ofereceu calendários com tempos de detonação para observar as nuvens de cogumelo dos testes no deserto. Em Asteroid City, de Wes Anderson, ambientado no deserto, os personagens também observam um teste atômico no horizonte, saindo de uma lanchonete para ver tudo com indiferença.

Inspiração

Mas uma era de ouro dos filmes de ficção científica na década de 1950 garantiu que as possibilidades mortais da Era Atômica também fossem exploradas com vividez. Essas nuvens em forma de cogumelo abordaram diretamente novas fontes de ansiedade: a corrida armamentista (iniciada após o teste atômico soviético em 1949), os efeitos da radiação, a bomba de hidrogênio e seu boom ainda maior. Filmes de monstros e alienígenas (e capas de livros de ficção científica) apresentavam a nuvem como uma caixa de Pandora moderna, uma tola liberação de forças desconhecidas.

Desde cedo, a nuvem podia significar o impensável - o apagamento da civilização - como no filme Os Últimos Cinco (1951), de Arch Oboler, que começa com explosões e uma montagem de monumentos históricos. A nuvem podia representar o começo ou o fim (para ecoar o título de um docudrama de 1947 sobre Oppenheimer). Podia ser o prelúdio de uma trama sobre a sobrevivência após uma explosão nuclear ou o juízo final de uma história que deu muito, muito errado. O filme Dr. Fantástico (1964), de Stanley Kubrick, cai na segunda categoria, terminando com uma sequência que usa filmagens de explosões (entre elas, o teste Trinity).

Mas Kubrick altera nossa compreensão das nuvens de cogumelo com o uso irônico de Vera Lynn cantando We’ll Meet Again, originalmente um standard britânico da Segunda Guerra Mundial. Vistas silenciosamente, as explosões poderiam ter induzido o pavor usual, uma emoção que de certa forma também retroalimentava a admiração e o medo da proeza militar. A sátira incomparável de Kubrick redireciona nosso foco para aqueles que estão no poder, para as estratégias absurdas da teoria dos jogos e para as vaidades egoístas envolvidas - como a imagem de Slim Pickens montando a bomba no estilo cowboy americano.

Tudo isso enfraquecia a nuvem de cogumelo como imagem totêmica que encerra toda discussão. Mas não duraria muito: “Margarida”, o anúncio da campanha do presidente Lyndon B. Johnson em 1964, destilou a ameaça nuclear em pouco menos de dois minutos. É a nuvem como o eterno “ou então” do patriarca protetor. Os riscos são grandes demais para serem ignorados, entoa Johnson na narração, enquanto uma garota conta as pétalas de uma flor. O áudio segue com uma contagem regressiva para uma explosão que toma toda a tela. Então, você sabe, vá lá e vote!

Publicidade

PUBLICIDADE

Os horrores da nuvem de cogumelo atingiram novos níveis na década de 1980, graças a representações realistas da guerra nuclear global. Enquanto as tensões entre os Estados Unidos e a União Soviética atingiam um pico febril durante o governo Reagan, The Day After (1983) quebrou recordes de audiência na televisão retratando explosões de mísseis e o sofrimento gráfico que se seguiu no Kansas. Na Grã-Bretanha, Threads (1984) fez quase o mesmo, enquanto no Japão Black Rain (1989), de Shohei Imamura, dramatizou os atentados de Hiroshima. Esses filmes reconectaram o quase clichê da nuvem de cogumelo com seu contexto humano de morte, caos e destruição.

Mas, nas décadas seguintes, a nuvem de cogumelo se tornou o efeito especial definitivo para os sucessos de bilheteria. O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final (1991), de James Cameron, replicou fielmente a aniquilação da explosão de uma bomba, assustadoramente explícita, mas ainda parte de um thriller de ficção científica com robôs. Três anos depois, uma explosão nuclear foi apenas a cereja do bolo de ação e aventura em True Lies, também de Cameron. Talvez fosse a era decadente das armas nucleares na tela: Arnold Schwarzenegger e Jamie Lee Curtis se abraçam depois da enésima fuga emocionante, com uma nuvem de ogiva como pano de fundo romântico.

O valor de entretenimento do desastre perdeu um pouco de seu apelo após o Onze de Setembro (quando vários filmes foram adiados ou alterados). Mas os dispositivos atômicos foram dispositivos de enredo úteis com destaque crescente nos sucessos de bilheteria dos anos 2010, implantando o choque da nuvem de cogumelo sempre que útil, como na abertura de Wolverine (2013) na Segunda Guerra Mundial. Quando Nagasaki é bombardeada pelos Estados Unidos, Logan (Hugh Jackman), prisioneiro de guerra, protege um soldado japonês da explosão, transformando o cataclismo numa pequena parte da história dos X-Men.

Será que a nuvem de cogumelo vai readquirir a mesma qualidade agourenta que tinha no auge da Guerra Fria? Twin Peaks: O Retorno (2017), de David Lynch, demonstrou uma possibilidade genuinamente desestabilizadora em seu episódio 8, extraindo todo o incômodo horror da Era Atômica e a possibilidade do mal. O teste Trinity é retratado com um movimento alucinógeno de câmera lenta e, numa das sequências surreais que se seguiram, uma criatura mutante eclode no local da bomba anos depois. Oppenheimer disse que seus cientistas “conheciam o pecado”, e Lynch, um viajante do inconsciente americano, restaura algum sentido da explosão atômica como foco de um pecado original do século 20.

Oppenheimer, dirigido por Christopher Nolan, apresenta a mais recente entrada da nuvem de cogumelo na iconografia com sua crônica dos resultados explosivos do Projeto Manhattan. Vemos a tradicional pluma ascendente, mas, em certo ponto, ela se transforma numa parede de chamas do tamanho de um IMAX, obscurecendo a paisagem. É uma visão assustadora, mas os takes de reação dos observadores são igualmente importantes.

Publicidade

O personagem-título de Cillian Murphy - que é mais ou menos assombrado por partículas subatômicas, mesmo em seus sonhos de estudante - parece desarmado ou tocado pela visão infernal da explosão. Ouvimos as famosas palavras do Bhagavad Gita, mas, no relato de Nolan, elas foram proferidas antes, em contexto totalmente diferente, sugerindo a bomba atômica como a suprema liberação psicossexual.

É uma representação que consegue cumprir e, ao mesmo tempo, ajustar as expectativas. Nolan retorna a explosão nuclear do reino do simbolismo para uma zona primordial de medos e impulsos - um cataclismo criado por outros seres humanos como nós./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

This image released by Universal Pictures shows Cillian Murphy as J. Robert Oppenheimer in a scene from "Oppenheimer." (Melinda Sue Gordon/Universal Pictures via AP) 
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.