A ausência de Koji Yakusho, de Dias Perfeitos, na lista de indicados ao Oscar de melhor ator é uma daquelas coisas inexplicáveis. O japonês de 68 anos, vencedor do prêmio de atuação masculina no Festival de Cannes, merecia demais por sua interpretação de um faxineiro de banheiros públicos em Tóquio. O filme de Wim Wenders, que concorre à estatueta de produção internacional e estreia nesta quinta-feira, 29, no Brasil, é daqueles que fazem a gente voltar a acreditar na humanidade.
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Yakusho (de Dança Comigo?, de 1996, e Babel, de 2006) vive Hirayama. Ele limpa os banheiros públicos do bairro de Shibuya, em Tóquio, com orgulho e de maneira meticulosa. De vez em quando, o calado Hirayama tem a companhia de seu colega de trabalho, o tagarela Takashi (Tokio Emoto).
Yakusho fez um curso com a equipe do Tokyo Toilet Project (projeto de banheiros de Tóquio, na tradução), para aprender a fazer o serviço direitinho. “Vou deixar a humildade de lado e dizer que eu fiquei excelente nesse trabalho. Me disseram que se um dia eu precisasse de emprego, eu conseguiria lá”, disse Yakusho, rindo, em entrevista ao Estadão, em Cannes.
Cada um dos banheiros é único, com projetos arquitetônicos de grandes nomes como Shigeru Ban, Tadao Ando, Toyo Ito e Kengo Kuma. Uma das coisas que surpreendem é que, mesmo antes da chegada de Hirayama, os banheiros parecem relativamente limpos.
“Eles estão em uso. Mas uma das ideias do Toilet Project, criado por Koji Yanai, é: se você visita um banheiro bem limpo, não se sentiria compelido a mantê-lo assim? Por isso, o projeto limpa os banheiros três vezes ao dia”, contou Yakusho.
Dias Perfeitos, incrivelmente, é um trabalho de encomenda. O alemão Wim Wenders, diretor de Paris, Texas (1984) e Asas do Desejo (1987), é um apaixonado pelo cinema de Yasujiro Ozu (1903-1963) e pela cultura japonesa.
Ele foi convidado a fazer uma exposição, uma coleção de curtas, o que quisesse, em torno do Toilet Project. Decidiu realizar um longa-metragem. Logo chegou à figura do faxineiro, que desenvolveu com o corroterista Takuma Takasaki.
Koji Yakusho afirmou não ser cinéfilo, mas acompanhava os longas de Wenders, admirado por muitos jovens cineastas japoneses. “Ele não tem medo de desafios”, disse o ator. “Não sei se entendo de maneira profunda todos os seus trabalhos, incluindo este. Ele realiza filmes que fazem pensar, é como se fosse um filósofo.”
Tudo sempre igual
Como na música Cotidiano, de Chico Buarque, todo dia Hirayama faz tudo sempre igual: acorda bem cedo quando começam a varrer a rua com uma vassoura de palha, cuida das plantas, escova os dentes na pia da cozinha de seu minúsculo apartamento, coloca o macacão do serviço, compra um café enlatado na máquina, entra no carro e parte rumo ao bairro de Shibuya, ouvindo sempre fitas-cassetes com canções de Lou Reed, Patti Smith, Van Morrison, entre outros.
Na hora do almoço, Hirayama se senta no banco do parque, come seu sanduíche, saca a máquina de filme do bolso e tira uma foto do komorebi, a luz do sol filtrada pelas árvores.
Depois do trabalho, Hirayama tira o uniforme, pega a bicicleta, vai ao mesmo onsen (banho público), ao mesmo restaurante e lê um livro de papel mesmo. Ele não tem apreço nenhum por nada digital. Seu celular apenas faz e recebe ligações.
Nos dias de folga, a rotina muda um pouco. É dia de lavar a roupa na lavanderia, de ir ao izakaya, de comprar um novo livro para a semana, quem sabe uma fita-cassete nova, de mandar revelar as fotos da semana e buscar as da anterior.
Ele vive com pouco. Não há roupas da moda nem iPhones à vista, muito menos computadores, tablets, televisões gigantes. Ele compra um livro e uma fita-cassete de cada vez. Hirayama é uma antítese do próprio Wim Wenders, que tem coleções enormes de Blu-rays, CDs, livros.
“Certamente interpretar o Hirayama me despertou o desejo de uma vida mais humilde, de não ter tantos desejos por coisas materiais e apreciar o que é antigo ou o que você tem há muito tempo”, disse Yakusho. “De sentir-me completo com uma vida minimalista. Talvez não esteja em mim viver assim, mas certamente é algo a que aspiro.”
Com Dias Perfeitos, Wim Wenders pergunta a si mesmo e a nós, espectadores, se é possível ser feliz com tão pouco ou com menos. A infelicidade geral das nações parece nos dizer que a quantidade de eletrodomésticos, eletrônicos e coisas que temos não nos deixa mais contentes. Mas será que conseguimos nos despir das necessidades tão supérfluas da vida contemporânea?
Hirayama não é um bobo feliz. Ele é um pouco solitário, fala quase nada. Só adiante vamos descobrir mais sobre seu passado. Mas, filmando todas as cenas da rotina do protagonista de uma só vez, Koji Yakusho foi entendendo seu personagem.
“Cada vez que eu repetia seus rituais, eu pensava em como ele estava se sentindo, por que era assim”, disse o ator. “Descobri que, por meio de suas ações repetitivas, ele encontrou uma maneira de ter uma vida satisfatória. Não ter tantos diálogos nessas cenas me fez ficar mais perto de Hirayama – e eu adoro papeis com poucas falas.” Yakusho brilha exatamente por extrair beleza do minimalismo, dos pequenos momentos.
Mas é possível que você, leitor, esteja aí pensando qual a graça de assistir a um filme em que o personagem faz tudo sempre igual: vassoura, planta, dente, café, fita-cassete, foto, banho, comida, livro.
A graça está justamente em se contaminar. Se a sequência de ações é – aparentemente – sempre igual, acredita Wim Wenders, a vida é o aqui e o agora. A rotina, em si, desaparece, e o que sobram são as pequenas variações, os pequenos encontros, os pequenos momentos. Pequenos, porém únicos. Fica a clareza de que cada pessoa é singular, cada momento só acontece uma vez, e as histórias cotidianas são aquelas que ficam para sempre. São a vida em si.
Dias Perfeitos é quase como uma meditação que tira quem assiste do caos, do trânsito, das telas pequenas e grandes, dos problemas. Naquelas duas horas, o filme lembra que a vida é mais que isso. Que há gentilezas e belezas escondidas no dia a dia corrido, mesmo para quem mora na balbúrdia de uma metrópole. E que, para citar outro compositor, agora Gonzaguinha: “É bonita, é bonita e é bonita”. Basta parar, olhar, sentir.
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