Como é ‘Folhas de Outono’, filme que surpreendeu ao ser eleito o melhor de 2023 pela revista ‘Time’?

Longa finlandês provoca reflexões sobre a moralidade do romance em meio à guerra e demonstra que a humanidade precisa enxergar a beleza das coisas. Leia crítica

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Por Daniel Oliveira
Atualização:

Vivemos em uma cultura de descarte e desperdício. O princípio é que algo ou alguém se resume àquela parte sua que tem algum valor produtivo, suscetível de ser explorada até a obsolescência. O resto deve ser ignorado ou jogado fora. Quando essa parte se esgota ou expira, ela também deve ser descartada. É o capitalismo eficiente. Essas imagens de rejeito são recorrentes em Folhas de Outono, desde os produtos vencidos que Ansa (Alma Pöysti) joga fora no supermercado até os entulhos destinados à caçamba e à destruição nos canteiros de obra em que Holappa (Jussi Vatanen) trabalha.

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Contudo, a questão que o veterano cineasta finlandês Aki Kaurismaki realmente coloca em seu filme, em exibição nos cinemas do Brasil, é se esse casal de protagonistas, Ansa e Holappa, também se resume a seu valor produtivo. Se esses dois seres proletários, quase invisíveis, também existem apenas como máquinas numa linha de produção, com todos os demais aspectos de suas vidas devendo ser descartados e ignorados.

Em outras palavras, seriam eles também material de rejeito num mundo em que somos o quanto valemos, ou são dignos de amor, de um romance, de poesia para além da mera sobrevivência? A questão não é apenas se existe amor em Helsinki, mas sim se existe amor nos tempos do capitalismo tardio.

O filme foi vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes. É um feito maior, mas não mais surpreendente do que emplacar o 1º lugar na lista de melhores de 2023 da ‘Time’, revista tradicional e generalista norte-americana, à frente de medalhões de Hollywood.

Cena do filme 'Folhas de Outono', em exibição nos cinemas Foto: Mubi/Divulgação

Ansa é uma etiquetadora de supermercado, que vive uma rotina mecanizada entre corredores sem vida, transporte público e lasanha de microondas, até ser demitida por colocar na bolsa um sanduíche vencido. Holappa é um pedreiro alcoólatra que se protege por trás do senso de humor cáustico e da garrafa sempre à mão. São duas existências submersas em uma melancolia desesperançada, até que eles se conhecem e despertam um no outro o desejo por algo mais que simplesmente pagar boletos.

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É a perfeita estrutura de uma comédia romântica – e é exatamente isso que Folhas de Outono é. Nos artifícios narrativos que separam o casal, como Holappa perder o número do telefone de Ansa anotado em um pedaço de papel, nos movimentos de câmera mínimos, apenas funcionais, e nos cortes secos, o longa de Kaurismaki é não só uma homenagem à fórmula clássica, mas especificamente um tributo aos grandes exemplares do gênero criados por Charles Chaplin, como Luzes da Ribalta e Luzes da Cidade – algo que fica bem explicitado na cena e no plano final do filme.

O diretor finlandês, porém, não se resume a reproduzir essas referências. O aspecto mais interessante de Folhas é que o que parece realmente interessar ao longa é questionar a ética da comédia romântica em tempos de capitalismo tardio. Um elemento sonoro recorrente no filme é o noticiário no rádio sobre a Guerra da Ucrânia.

Cena do filme 'Folhas de Outono', em cartaz nos cinemas Foto: Mubi/Divulgação

Nessa insistência da atrocidade e da barbárie interrompendo a rotina banal dos protagonistas, Kaurismaki parece perguntar-se (e a nós) sobre a moralidade do romance em tempos de guerra, de bombardeios de hospitais e genocídio de crianças. E ao fazer isso, ele questiona a própria ética da arte nos tempos atuais: qual a moralidade de contar a história de dois personagens brancos se apaixonando quando o mundo inteiro parece prestes a acabar, seja pela hecatombe bélica ou climática?

A resposta é que nós precisamos de beleza. Precisamos manter e acreditar no valor intrínseco da arte, mesmo quando todo o resto da humanidade é uma linha de produção de feiura.

As locações centrais do longa representam, de certa forma, o esqueleto que sustenta o capitalismo – o supermercado, o canteiro de obras –, locais tidos como sem poesia. E o que Kaurismaki e seu filme propõem é encontrar e revelar a poesia nesses lugares e nas pessoas que os habitam.

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Ele faz isso com a ajuda das performances sutis e comoventes de Pöysti e Vatanen, de um roteiro recheado de diálogos afiados (“estou deprimido porque bebo muito”, “e por que você bebe muito?”, “porque estou deprimido”) e de uma trilha musical onipresente e impecável. As canções de Folhas são tão centrais e conduzem a trama de tal forma que o filme acaba sendo quase um musical nórdico.

Os títulos vão desde exemplares do cancioneiro pop finlandês que parecem um Roberto Carlos de Helsinki até a apresentação da girl band Maustetytöt, uma espécie de Breeders nórdica, cuja canção Syntynyt suruun ja puettu pettymyksin (Nascida na tristeza e vestida de decepção, em tradução livre) resume a melancolia proletária do capitalismo tardio do longa e ficaria grudada na sua cabeça se você conseguisse pronunciar algum som em finlandês.

O diretor Aki Kaurismaki e os protagonistas dele, Alma Pöysti e Jussi Vatanen, nos bastidores do filme 'Folhas de Outono' Foto: Mubi/Divulgação

Tudo isso somado ao estilo já consagrado do cineasta – desde o uso chapado de cores primárias como o verde, azul e vermelho até o humor tão impassível quanto genial (o naipe da senhorinha que controla o karaokê no bar é puro suco de Kaurismaki) – faz do filme uma das produções mais bem realizadas e irresistíveis de 2023.

Folhas de Outono não quer denunciar as atrocidades da guerra, resolver a catástrofe climática ou evitar o apocalipse iminente, mas aquece o coração do espectador de um jeito que nós desesperadamente precisamos no mundo atual. Na esperança melancólica de Ansa, que não compara homens a porcos porque porcos são inteligentes e empáticos, e na amargura macambúzia de Holappa, um homem cujo reflexo no espelho despedaçado é tão quebrado quanto ele, o diretor finlandês oferece delicadeza ao cenário apocalíptico em que nos encontramos.

Tão recorrente quanto o noticiário radiofônico da guerra é o gesto de Ansa de mudar para uma outra estação tocando música – e talvez essa seja a síntese perfeita do longa. Porque não somos máquinas de produção, nosso prazo de validade ainda não expirou e precisamos de poesia. Temos direito à beleza e ao amor. Do contrário, talvez realmente esteja na hora de jogar a humanidade no lixo.

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