Como o modesto Sound of Freedom, filme de um estúdio alternativo, desafiou os “blockbusters” da temporada Oppenheimer e Barbie nos Estados Unidos? E qual é a fórmula do drama sobre tráfico infantil e pedofilia que foi associado à proliferação de teorias da conspiração, recebeu apoio do magnata Elon Musk e do ex-presidente americano Donald Trump, e ligou sinais de alerta nos gigantes de Hollywood? O Estadão foi conferir estas respostas em uma sessão nos EUA.
A arrecadação ascendente da produção, que ultrapassou a marca de US$ 170 milhões (cerca de R$ 843 milhões) nas bilheterias americanas no último fim de semana, diverge da sessão morna e com menos de 10% de ocupação da sala em que a reportagem esteve no sábado (12). O recinto, um multiplex na região central de Houston, maior cidade do Texas. Claro que apenas uma sala não é capaz de atestar ou não o tamanho do sucesso.
Por ter o tráfico e a exploração sexual de crianças como tema central, o filme vem sendo tratado pela imprensa norte-americana como uma obra ligada a teorias da conspiração da extrema-direita, principalmente pela figura do protagonista Jim Caviezel, apoiador do ex-presidente dos EUA, empenhado na divulgação. O filme já recebeu título brasileiro, Som da Liberdade, e ganhou data de estreia por aqui: 21 de setembro.
Como foi a sessão no Texas?
O longa tem características que poderiam ser um atrativo para o público do estado sulista com forte presença evangélica e de republicanos, ideia que ganha reforço com a exibição de um comercial do exército norte-americano e os trailers que antecederam a produção, em sua maioria outras produções com temática religiosa ou bíblica, como Cabrini e Journey to Bethlehem (Jornada para Belém, em livre tradução), com Antonio Banderas no papel do rei Herodes.
Mas e o filme, afinal?
Criado a partir de uma história real, tem uma leve aspiração a Missão: Impossível com pouco orçamento – o custo foi de US$ 14,5 milhões, baixo para os padrões da indústria cinematográfica local – e sem traquitanas tecnológicas. O drama gira em torno da busca de Tim Ballard (Caviezel), agente da Divisão de Investigações de Segurança Interna dos EUA responsável por lidar com pedófilos e resgate de crianças traficadas, pelos irmãos Rocío (Cristal Aparicio) e Miguel (Lucas Ávila), levados de Honduras para outros países.
Frustrado por não conseguir completar a missão, ele pede ao chefe autorização para montar uma megaoperação internacional. É a partir daí que o roteiro mostra falhas e a interpretação de Caviezel fica mais sofrível, numa trama que caminha para um pastiche quando ele vai à Colômbia e se conecta com criminosos na tentativa de completar seu objetivo.
Em contraste com as atuações clichês dos personagens adultos, os atores mirins têm bom desempenho. A direção de Alejandro Monteverde, em seu terceiro longa, consegue mostrar como as crianças são exploradas, abordando a gravidade da situação, porém, sem apelar para cenas explícitas.
Insistente na missão
Em determinado momento, a polícia norte-americana avisa que o projeto se tornou inviável, porém Tim quer continuar. Ele é aconselhado pela mulher, Katherine (Mira Sorvino), com quem tem seis filhos até então (na vida real, foram sete e mais dois adotados), a abandonar o emprego e seguir na busca pelo resgate dos menores traficados. Para isso, o policial faz alianças com figuras do submundo sob o pretexto de criar um clube de prostituição numa ilha caribenha para que milionários se divirtam abusando de crianças e adolescentes.
No segundo ato do filme, o protagonista vai além e se infiltra em um grupo análogo às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia na selva daquele país e dá continuidade às sequências de ação em um ato heroico na tentativa de resgatar a personagem que dá origem à trama central.
Essa mistura de situações tem conexão com as teorias QAnon, movimento ligado à extrema-direita norte-americana que propaga a ideia de que existe uma elite mundial, incluindo astros de Hollywood, envolvida no tráfico infantil para fins sexuais e também satânicos. Parte das pessoas que compartilham esse pensamento estiveram na invasão do Capitólio, em 2021, em Washington, por acreditar que Trump é um dos líderes no combate a esse possível grupo. Mas não há nenhuma menção explícita no filme.
‘Cabana do Pai Tomás’ do século 21?
Ao final da sessão, com os créditos na tela, surge o aviso de uma mensagem especial. Eis que Jim Caviezel aparece em um novo vídeo, agradecendo a presença das pessoas no cinema. “Acredito que alguns tenham se sentido tristes, com um certo medo, o que é compreensível. Porém, viver com medo não é a maneira de resolvermos esse problema. Mas, sim, viver com esperança, acreditar que podemos fazer a diferença porque podemos. Este filme não é sobre mim nem Tim Ballard. É sobre essas crianças”, endossa.
O ator cita o livro A Cabana do Pai Tomás, escrito pela abolicionista Harriet Beecher Stowe no século 19. Há mais de cem anos, o ex-presidente dos EUA Abraham Lincoln (1809-1865) havia dito que a publicação motivou a libertação dos negros. “Acho que podemos fazer de Sound of Freedom o A Cabana do Pai Tomás sobre a escravidão do século 21″, acredita.
Ao final da aparição, ele fala sobre o QR code na tela para que o público possa comprar ingressos para pessoas que não têm dinheiro para ir ao cinema. O fato de o filme ter sido distribuído por uma empresa independente por meio de financiamento coletivo inviabilizou a verba de marketing. “Essas crianças podem ser mais poderosas que os chefes do tráfico de drogas, presidentes, parlamentares ou até bilionários da área de tecnologia”, defende.
Caviezel diz que as compras de entradas colaboram para propagação das ideias do filme - sem dizer nada sobre uma possível ajuda direta para as vítimas de tráfico - e deixa sua mensagem religiosa. “Lembre-se: as crianças de Deus não estão à venda”.
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