A cineasta Lillah Halla (do premiado curta-metragem Menarca) estava observando a fronteira entre Brasil e Uruguai quando percebeu uma coisa: era preciso apenas cruzar uma fronteira político-geográfica para ser permitido interromper uma gravidez. Do lado uruguaio, o procedimento passou a ser legal em 2012. No Brasil, é proibido e ainda agita os dois lados da discussão. Foi aí, nesse pensamento de fronteira, que nasceu a ideia de Levante.
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O longa-metragem, que estreou no Brasil na última quinta-feira, 22, fala sobre Sofia (Ayomi Domenica), jovem jogadora de vôlei que se vê grávida bem no auge de sua carreira dentro das quadras – uma olheira, inclusive, quer levá-la para o Chile para jogar profissionalmente. Ela não quer seguir com a gestação e pretende, acima de tudo, focar no esporte. É aí que começa o embate, com pessoas pressionando a jovem para manter a criança.
“Vejo essa fronteira do Uruguai como uma quadra de vôlei mesmo. É uma situação muito específica, também muito visual”, conta Halla, em entrevista ao Estadão. A partir daí, as ideias foram surgindo e se encontrando, como colocar a protagonista como a jogadora do esporte e, principalmente, em criar um ambiente de intolerância insustentável ao redor da personagem, enquanto escrevia o filme durante as eleições de 2018.
Essas ideias todas, que antes estavam apenas no papel, viraram esse filme maduro que é Levante. Percebe-se como Halla tem algo a falar aqui. Não à toa, o longa-metragem se destacou em premiações e festivais: foi exibido nas mostras paralelas do Festival de Cinema de Cannes, em 2023, e foi considerado o melhor filme de estreia pela Fipresci, a Federação Internacional de Críticos de Cinema, durante o festival.
Também recebeu os prêmios de melhor filme no Festival de Cinema Latino-Americano de Biarritz e no Mix Brasil e de melhor filme ibero-americano no Festival de Palm Springs, além de melhor direção de ficção no Festival do Rio.
“A gente até chegou a cogitar um final mais otimista, mais feliz, mas percebemos naquele momento que não tinha como terminar assim em um filme com esse foco, com essa história”, diz Maria Elena Morán, roteirista. O fato é que o filme, na jornada de Sofia, questiona a legalização econômica do aborto. Em determinado momento, uma personagem diz que quem tem dinheiro vai lá e paga. Mas e quem não tem? A pergunta vai para a plateia.
Além do aborto
Ainda que a questão da interrupção da gravidez seja o principal norte na trama de Levante, elenco, diretora e a roteirista María Elena Morán destacam como o filme, na verdade, não é exatamente uma história apenas sobre isso – mas, na verdade, passa por essa reflexão.
“Para se construir um levante, é preciso da coletividade”, explica a diretora. É um filme que fala sobre a cartografia do gênero, sobre políticas que atravessam existências e, acima de tudo, corpos. Mas, sobretudo, é sobre essa questão essencial do que é um levante: um grupo de pessoas que se unem em prol de uma transformação ou, então, de um objetivo.
Ayomi explica que essa coletividade nasceu nos bastidores. “A gente trocou muito relato pessoal, vivências, conversas com quem a gente conhecia. Isso deu sentido para tudo. Foi uma forma de nos conectarmos com a história. É algo difícil e duro, mas importante já que sentimos que estávamos fazendo uma coisa honesta e próxima da nossa realidade”, diz.
Loro Bardot, ator que vive uma parceira de Sofia, vai direto ao ponto no que acha mais relevante. “Quando penso no filme, não penso em aborto. Não é o tema principal”, explica. “O filme conta uma história honesta, crua, que é do ser humano tentando sobreviver e fazendo de tudo para sair daquela situação. Não é só a jovem querendo abortar: é também a ótica da treinadora, do pai, dos amigos. É uma comunidade que é afetada por aquilo.”
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