Francis Ford Coppola não acredita na América. Podemos perceber isso em Megalópolis, seu novo filme, no momento em que o personagem interpretado por Laurence Fishburne diz que ‘um império desmorona quando as pessoas não acreditam mais nele’. Contraste claro com a primeira frase de O Poderoso Chefão (1972): ‘Eu acredito na América’, dita por Amerigo Bonasera a Don Vito Corleone.
Ao abordar essa descrença, o histórico cineasta faz um paralelo com a antiguidade italiana, que serve de alicerce para o longa-metragem que será lançado nesta quinta-feira, 31, nos cinemas brasileiros. “Perdi a esperança de que o aparato político tradicional resolva os problemas”, diz ele, em um hotel nos Jardins, em São Paulo, na tarde desta segunda-feira, 28, durante entrevista concedida ao Estadão.
“Roma foi muito bem-sucedida, conquistou metade do mundo e tinha muito dinheiro, que chegava ao Senado, mas não chegava ao povo. A mesma coisa acontece na América. A América conseguiu derrotar a inflação mundial com mais sucesso, então há toneladas de dinheiro na América. Mas os atuais políticos estão mais preocupados com seu próprio poder e privilégio do que em governar o país. O cenário se repete como em Roma”, acrescenta.
Coppola, aos 85 anos, está frágil e anda com uma bengala. Discreto e alheio a festejos, dispensou um jantar de gala na chegada ao Brasil e se mostrou disposto a encarar uma agenda intensa de quatro dias para promover Megalópolis. O mestre norte-americano ainda será o homenageado com o Prêmio Leon Cakoff da 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Mas sua visita extraordinária ao País não surge do acaso. A cidade de Curitiba inspirou alguns elementos do filme, assim como o trabalho de um político paranaense. “No decorrer da realização de pesquisas, visitei vários lugares onde ouvi dizer que estava começando o que poderia ser chamado de uma abordagem sensata para a vida moderna, conhecida também como ‘utopia’ – no sentido de resolver problemas que não precisariam existir”, comenta.
Ele segue: “Um desses lugares era Curitiba, que ia crescer muito e um comitê de arquitetos discutiu o que eles poderiam fazer. Um dos membros, um jovem arquiteto chamado Jaime Lerner (1937-2021), tornou-se o prefeito da cidade [em três mandatos: 1971, 1979 e 1989] e implementou essas ideias. Fiz uma visita [em 2003] e conheci Jaime, um homem maravilhoso que também foi governador do Paraná [entre 1995 e 2002] e fez com que ideias realmente utópicas ganhassem vida em Curitiba”, explica o realizador.
A fábula futurista e ambiciosa de Megalópolis basicamente segue o conflito entre Cesar Catilina (Adam Driver), um arquiteto genial que busca saltar para um futuro idealista graças ao desenvolvimento do dispositivo megalon, e seu opositor, o prefeito Franklyn Cicero (Giancarlo Esposito), defensor de propostas mais realistas à cidade de Nova Roma, construída sobre as ruínas de Nova York. No meio disso há Julia (Nathalie Emmanuel), filha de Cicero, que se envolve num romance com Cesar.
Assim como seu protagonista, Coppola atravessou uma jornada megalomaníaca para fazer o filme sair do papel. O roteiro começou a ser elaborado nos anos 1980 e já dava indícios de tamanha complexidade. Em 2001, quase deu certo, mas a produção foi interrompida por causa dos ataques de 11 de setembro. Finalmente, em 2019, ele precisou vender parte de uma de suas vinícolas para pegar um empréstimo bancário de aproximadamente US$ 120 milhões e, assim, alavancar o projeto.
Cinema atual é fast-food
Ele reconhece que o filme foge da obviedade do cinema atual e requer mais de uma visita para melhor compreensão. “O cinema comercial é baseado em uma fórmula que foi vendida ao público da mesma forma que vendem um hambúrguer do McDonald’s ou uma Coca-Cola”, dispara. “Em outras palavras, você tem que saber exatamente qual é a receita para que o público fique viciado nela. Quando o cinema se expande para uma ideia mais ambiciosa, precisa ajudar o público a entrar corretamente, porque o cinema é uma ilusão. Se as pessoas não aceitam a ilusão e sabem como você está fazendo o truque de mágica, elas não se interessam por isso. Mas se elas não sabem como a ilusão funciona, dão sua própria emoção ao filme”, explica o cineasta.
Para exemplificar esse conceito, ele relembra a recepção do épico Apocalypse Now (1979), mergulho caótico nos horrores da Guerra do Vietnã. “Apocalypse Now mudou as regras. Quando o filme foi lançado, havia pessoas que diziam que era o pior filme que já tinham visto e o melhor filme que já tinham visto. Mas elas continuaram indo ver de novo e de novo. Ainda hoje, 40 anos depois, ele ainda é exibido todos os anos com grandes rendimentos. Então, Megalópolis é como aquele filme. Ele tem suas próprias regras, e a porta que ele convida você a entrar é, para a maioria do público, muito pequena e não tão clara como em filmes cujo propósito é ganhar dinheiro”, compara.
Cultura woke e sociedade consumista
Coppola já criticou alguns aspectos da cultura woke e do politicamente correto. Até por isso, fez questão de escalar atores rodeados de polêmicas (ou ‘cancelados’) para o novo filme: Shia LeBouf, processado por supostas agressões contra a ex-namorada, e Jon Voight, apoiador de Donald Trump.
“Não há dúvida de que existe um mal-entendido quanto ao papel da arte. A arte existe para iluminar a vida contemporânea. Em outras palavras, a arte está lá para que as pessoas possam ver e entender o mundo em que estão vivendo. E eu não sinto que estamos vendo o que está em jogo”, diz, ao ser perguntado se sente que atualmente há uma censura velada em torno dos artistas.
Em seguida, ele atacou a faceta consumista da sociedade moderna. “Talvez não deveria haver tantos comerciais dizendo às pessoas que elas não estão bem do jeito que são, e que seria melhor se tivessem um carro de US$ 100 mil o qual elas nunca terão. Basicamente, toda nossa estrutura está lá para vender um pouco de felicidade às pessoas. Acho que talvez as pessoas estejam sendo deliberadamente mantidas infelizes para que sejam melhores consumidores”, opina o astro.
A força da Nova Hollywood
No caso de Megalópolis, o cineasta se balizou em uma ideia totalmente original, ao contrário da saga da família Corleone, concebida no livro de Mario Puzo, ou do terror fantasioso de Drácula de Bram Stoker (1992), germinado pelo célebre autor irlandês.
Questionado sobre qual foi a obra mais difícil de adaptar para as telonas, ele destaca Coração das Trevas (1899), de Joseph Conrad, que inspirou Apocalypse Now. “Nunca me perguntaram isso. É uma boa pergunta. O roteirista brilhante John Milius adaptou Apocalypse Now com George Lucas. Orson Welles, quando velho, sentou ao meu lado e me disse que sempre quis adaptar Coração das Trevas. Ele olhou para mim e disse: ‘você fez um ótimo trabalho em Apocalypse Now’, mas não era para mim que o elogio deveria ir. Deveria ser para George Lucas e John Milius”, diz.
Inevitável citar Coppola e não associá-lo à Nova Hollywood, o movimento cinematográfico que revolucionou a estética da indústria na década de 1970, do qual ele fez parte com Martin Scorsese, Brian De Palma, George Lucas, Steven Spielberg, entre outros. “Foi um momento único por uma razão que eu não ouvi ser muito discutida. Os jovens que compunham aquele grupo, eu como o mais velho, tiveram duas inspirações fantásticas. Uma foi o tremendo trabalho de diretores americanos como William Wyler, Fred Zinnemann, Lewis Milestone e John Huston. Ao mesmo tempo, também tínhamos nossos olhos nos japoneses, nos franceses, nos italianos. Então, foi uma combinação tão poderosa que nos deu à luz. Foi o golpe duplo, por assim dizer, que nos inspirou”, explica.
O milagre Corleone
No fim da entrevista, Coppola permitiu ao repórter do Estadão extrapolar os 10 minutos previstos para o papo. “Não dê ouvidos a eles”, disse, ao se referir aos assessores que indicavam o fim da sessão. O tempo de acréscimo foi dedicado à obra máxima do cinema, na qual o criador afirma não enxergar exatamente como uma trilogia.
“São realmente duas partes, parte um e parte dois, e um epílogo. É assim que o novo terceiro filme foi editado: chama-se A Morte de Michael Corleone. Não é mais O Poderoso Chefão: Parte III”, diz, antes de negar que tenha vislumbrado três peças cinematográficas quando começou a trabalhar na primeira delas.
“Eu nem sequer tinha em mente que iria sobreviver ao filme. Estava tão certo de que seria demitido. Eu tinha três filhos naquela época, então só estava preocupado se teria o suficiente. Eu não tinha dinheiro. As pessoas pensam que a família Coppola é essa dinastia, mas quando cheguei a Hollywood, eu nem podia me dar ao luxo de ter um carro ou uma namorada. Tive tremenda sorte de ter tanto sucesso com O Poderoso Chefão. Foi um milagre”, finaliza.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.