Senão em toda a existência do Festival de Cannes, pelo menos desde o começo dos 1990 apenas um filme exibido no primeiro dia da competição venceu a Palma de Ouro. E foi uma escolha surpreendente, porque o estilista romântico Wong Kar-wai presidia o júri.
Nada mais distante dele do que a pegada social de Ken Loach, mas Kar-wai apaixonou-se por Ventos da Liberdade e bancou até o fim a vitória do autor inglês. O mexicano Alejandro González Iñárritu preside agora o júri, e vai depender dele – e de seu júri – o reconhecimento para Bacurau. Independentemente de Palma de Ouro, o novo longa de Kleber Mendonça Filho, codirigido por Juliano Dornelles, está na disputa, e com força.
Bacurau é o nome de um pássaro da noite e gíria para o último ônibus noturno nas grandes cidades do Nordeste. Para desespero de seus detratores, que fizeram o impossível para alijar Aquarius do Oscar – devido ao protesto do autor e sua equipe no tapete vermelho de Cannes, em 2016 –, Kleber está de volta, e com outro grande filme. O repórter assistiu-o numa tela ‘normal’, não na tela gigantesca do palais, que propicia a imersão. Se houvesse diferença – ter visto lá – seria para ainda melhor.
Bacurau é um faroeste futurista ideológico. Passa-se daqui a alguns anos. O Brasil inteiro cabe na cidadezinha do título, em pleno sertão. No final dos créditos, e poderá parecer provocação, o letreiro informa que Bacurau gerou centenas de empregos e ainda possui a inestimável contribuição cultural. A identidade de um país não tem preço, e é isso que Kleber e Dornelles colocam na tela.
O filme começa com os signos indicadores de um funeral. Um acidente na estrada, caixões derrubados, escancarados, semidestruídos. Logo, um funeral de verdade – e de uma matriarca que encheu esse mundo de filhos, netos e eles se espalharam pelo Brasil e pelo exterior. Mas logo ocorre algo estranho. Ao tentar mostrar para seus alunos onde Bacurau se localiza no mapa, o diretor da escola não encontra vestígio do lugar no GPS. Mais estranho ainda, os celulares param de funcionar e Bacurau fica isolada.
O Som ao Redor já era sobre uma comunidade fechada e Aquarius, sobre uma mulher – a Clara de Sônia Braga – que angariava apoios para enfrentar o sistema que queria derrubar o prédio em que vivia. O quadro agora é mais amplo, embora apresente signos parecidos.
Há um político autoritário que quer dobrar a resistência de Bacurau. Surgem, e não por acaso, esses mercenários estrangeiros – que só se comunicam em inglês – e instauram a matança. O grupo de assassinos inclui, entre os representantes, um integrante do Poder Judiciário, ou que pelo menos porta uma carteira que o identifica como tal. Para fazer frente à política mancomunada com interesses externos, a população, que não é nada subserviente, pega em armas.
Sônia Braga está de volta ao cinema de Kleber Mendonça como Domingas, a médica local. Tem uma cena de confronto com o líder da milícia norte-americana, um nazista interpretado pelo alemão Udo Kier. Tudo se resolve no tiro e na faca.
Kleber e Dornelles reabrem com brilho a vertente do western ideológico de Glauber Rocha, à qual acrescentam elementos de ficção científica, com direito a drones que se assemelham a discos voadores, e uma trilha com a vibração de Geraldo Vandré. O Brasil daqui a alguns anos é um espelho do presente e do passado. Se isso serve de estímulo para aumentar a expectativa, em 1969 – há 50 anos –, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, com seu título internacional, Antonio das Mortes, venceu o prêmio de mise-en-scène em Cannes.
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