THE NEW YORK TIMES - Cineastas adoram histórias de sobrevivência, mas há aspectos do chamado “milagre dos Andes” que representam dificuldades especiais para qualquer filme, principalmente porque, meio século depois, a reviravolta mais notória que os eventos tomaram será bem conhecida pela maioria dos espectadores.
Em 13 de outubro de 1972, um avião uruguaio com destino a Santiago, no Chile, transportando 45 pessoas, incluindo o time de rúgbi conhecido como Old Christians, caiu nos Andes. Dez semanas depois, em uma operação de resgate, 16 pessoas sobreviveram. Eles o fizeram por meio de uma mistura de desenvoltura, resistência, fé e, o que ficou famoso, a decisão - em um ambiente montanhoso e nevado, sem alimentos - de comer os mortos.
Roberto Canessa, um dos sobreviventes que se tornou um eminente cardiologista pediátrico e candidato à presidência do Uruguai em 1994, disse à National Geographic que “antropofagia” é uma palavra melhor para o que aconteceu do que “canibalismo”, que poderia implicar a morte de pessoas para consumo.
Misturando imagens dos Andes com locações na Sierra Nevada, na Espanha, o filme em espanhol A Sociedade da Neve, dirigido por J.A. Bayona (O Orfanato), tem a verossimilhança que faltou ao filme Vivos, de 1993, com seu elenco substancialmente americano, liderado por um Ethan Hawke pré-Caindo na Real, com cabelos de capa de revista.
Mas A Sociedade da Neve, baseado em um livro de Pablo Vierci, não tem o imediatismo de ver os sobreviventes reais, um espetáculo oferecido pelo documentário Stranded: I’ve Come From a Plane That Crashed on the Mountains (2008) - curiosamente, lançado em português também com o título A Sociedade da Neve.
Para um veterano em ação como Bayona, o acidente é a parte mais fácil. O prenúncio é implacável e redundante. “Esta pode ser nossa última viagem juntos”, diz Pancho Delgado (Valentino Alonso), nas primeiras cenas em Montevidéu, a Numa Turcatti (Enzo Vogrincic), um passageiro que narra o filme (e cujo destino o longa reserva para um de seus truques mais baratos).
Durante o voo, uma manchete de jornal alerta os espectadores sobre um barco que afundou na costa de Montevidéu. Os jovens discutem como é perigoso voar pelos Andes devido à sucção criada pelos ventos quentes da Argentina e o ar frio das montanhas.
O acidente de avião é assustadoramente visceral.
A neve, os detritos e o vento se espalham pela fuselagem aberta. Fileiras de assentos desabam como acordeões, empalando alguns dos passageiros. A trilha sonora é um zumbido de metal chocante. Depois que os destroços param, Bayona filma os primeiros momentos em close-ups desorientadores, enquanto os personagens lutam para entender o que acabou de acontecer e a geometria de onde estão.
A longa distância se mostra mais complicada do ponto de vista dramático. “O problema é que nenhum filme pode realmente representar a dimensão da experiência”, escreveu Roger Ebert sobre Vivos há 31 anos, e isso continua sendo verdade até hoje. O cinema é bom em visão e som, mas é menos eficaz em capturar a fome, o frio e a demora, pelo menos quando a duração é medida em dias e semanas.
Depois, há a questão de quão gráfico esse filme deve ser; nesse aspecto, A Sociedade da Neve, apesar de pelo menos uma caixa torácica ser visivelmente cortada até o osso, mantém-se discreto.
Nenhuma versão dessa história retratou a decisão dos sobreviventes de comer carne humana como precipitada ou descuidada. Desta vez, uma vez que a escolha é feita, inicialmente três homens fazem o abate fora da vista dos outros. Mas quando uma avalanche atinge o grupo, matando alguns deles, de repente, comer carne sem nomes e rostos se torna impossível, diz Numa em sua narração no filme. Bayona então mostra Roberto (Matías Recalt) cortando uma carne ostensivamente não anônima - mas com muito tato mantém fora de quadro qualquer coisa identificável sobre o corpo.
O filme é essencialmente envolvente, e é difícil resistir a algumas partes dele, incluindo a primeira visão de outra pessoa por Nando Parrado (Agustín Pardella) e Roberto, depois que os dois passaram dias escalando o caminho em direção à civilização. Mas A Sociedade da Neve é um filme perverso para ser assistido da forma como a maioria das pessoas o verá - na Netflix, no conforto de suas casas, com uma geladeira por perto.
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