Chegou o momento do apocalipse, mas nós não sabemos a quem culpar. Em O Mundo Depois de Nós, os telefones e a Internet param de funcionar. Há ruídos estridentes no céu, e a natureza se comporta de maneira estranha. Fala-se num ataque cibernético, ou talvez um ato de terrorismo. Cogita-se um golpe de Estado pelas mãos de empresários poderosos.
No entanto, ninguém consegue esclarecer as dúvidas, tampouco determinar o responsável. Seriam os iranianos? Os russos, os chineses, os norte-coreanos? As pessoas somem das ruas; a mídia interrompe suas atividades. Qualquer hipótese se resume a uma especulação vazia, de modo que os norte-americanos se voltam uns contra os outros.
Na ausência de vilões, os mocinhos e as vítimas também somem de cena. As duas famílias no centro desta trama (os Sandford e os Scott) se encontram bem abrigados numa casa luxuosa, com comida, vinho, piscina, eletricidade, aparelho de som funcionando. Nenhum desconhecido chega para perturbá-los no lar, como de costume em tramas apocalípticas. A princípio, eles podem permanecer ali o tempo que desejarem.
Esqueça a chegada de um herói virtuoso para salvar o dia. Nem pense em Ethan Hunt, em James Bond, em John Wick ou qualquer outro homem corajoso, disposto a enfrentar adversidades e se sacrificar em nome da humanidade (além dos próprios filhos pequenos, é claro) para interromper o caos planetário. A salvação inexiste — os diálogos estão repletos de variações da frase “não é possível voltar ao normal”.
Neste contexto, pouco importa se você é arrogante e racista (caso de Amanda, personagem de Julia Roberts) ou bondoso e tolerante (caso de Clay, marido dela, interpretado por Ethan Hawke). Você pode ter jantado com os homens mais poderosos do mundo (a exemplo do personagem de Mahershala Ali). Todos afundaremos juntos, ao mesmo tempo, sem seletividade moral.
O longa-metragem da Netflix constitui uma raridade nos serviços de streaming, e no cinema comercial de modo mais amplo. Trata-se de uma obra sem esperanças nem piedade — o antifilme natalino por definição. O diretor Sam Esmail, de Mr. Robot, adapta o livro de Rumaan Alam com atenção às contradições dos personagens, porém sem lhes conceder o ponto de vista. Nunca experimentamos o conflito global pela perspectiva de pai, mãe, nem filhos. A câmera e o olhar permanecem à distância, observando-os sem se envolver.
Desconhecemos seus planos ou intenções. Ignoramos as informações detidas por G.H. Scott a respeito da crise, ou o arsenal guardado pelo vizinho Danny (Kevin Bacon). O projeto não aparenta ser concebido para o espectador, mas apesar de nós. Ganhamos acesso VIP à angústia de uma família burguesa, ainda que jamais sejamos convidados a temer por seu futuro. O diretor ousa nos deixar frios diante do fim dos tempos.
De certo modo, O Mundo Depois de Nós constitui a provocação ideal para nossa época de polarização política, de hipertrofia moral e de intolerância às diferenças. Estes personagens estão repletos de raiva pela situação adversa que atravessam, ainda que sejam privados da representação do inimigo. O amor e o ódio; a compaixão e o egoísmo se convertem numa questão de fé — termo estranho para um cenário sem religiões. Ao invés do destino traçado por alguém, reina o acaso.
Esmail jamais brinca com o espectador. Rejeita as pistas falsas, o jogo de adivinhações, as reviravoltas insanas, as revelações no final.
A ficção científica contraria quase todas as regras do gênero: a noção de finalidade, o perigo que invade o lar, a união de um pequeno grupo em nome da sociedade, o sacrifício reparador, o bem contra o mal. O texto foge aos ensinamentos: enquanto a maioria das superproduções deste filão ensinam a respeitar a natureza, a amar o próximo e valorizar a família, esta aqui prefere a sugestão de que nada disso importa. Tendo amado a natureza ou não, respeitado os amigos ou não, morreremos da mesma maneira.
Trata-se de uma obra niilista, e consciente de sê-lo. Os instantes pontuais de humor, profundamente cínicos, decorrem da constatação de nossa pequenez diante dos rumos do universo. Por isso, a única felicidade reside na menina alienada, que ignora a família e a própria comunidade, em busca do sonho de terminar sua série preferida: Friends. O mundo lá fora que se exploda, literalmente. Prefiro descobrir se Ross e Rachel terminarão juntos. Para ela, a alegria da ficção se substitui à angústia do real, reprimindo-a.
Por isso, o final desta aventura se tornou um tema de discussão à parte nas redes sociais e nos fóruns da Internet. Que absurdo, este filme não tem conclusão! Ele não termina! E o meu direito de consumidor, de terminar a sessão feliz, com as respostas desejadas? Como me contam uma história de mais de duas horas de duração, sem se preocuparem com a minha satisfação?
A obra trabalha na chave do anticlímax e da frustração, voluntariamente. Verdade seja dita: as cenas grandiosas de perseguição na estrada, de aviões caindo e prédios ruindo estão presentes. No entanto, são cuidadosamente retiradas de seu contexto espetacular, de relações de causa e consequência. Não haverá recompensa emocional ao espectador. Qualquer grito ou lágrima permanece preso na garganta, sem válvula de escape. Não há soluções fáceis para dilemas complexos.
Assim, em tempos de diversão a todo custo, de entretenimento veloz e passageiro, O Mundo Depois de Nós ousa ser cuidadosamente desagradável. Ele nos relembra a importância dos filmes capazes de manter outras relações com o espectador, para além do princípio do prazer. A Netflix, desta vez, nos provoca.
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