Judeu, mulherengo, genial, arrogante, progressista. São vários os adjetivos que servem para descrever J. Robert Oppenheimer, físico americano que entrou pra história como um dos principais nomes a desenvolver as bombas atômicas que dizimaram mais de uma centena de milhares de japoneses durante a Segunda Guerra.
Como resumir essa história, com todas suas contradições, em uma tela de cinema? Como dar conta da força de Oppenheimer? Quem assumiu a tarefa foi Christopher Nolan, cineasta que já assinou projetos variados como A Origem, Batman: O Cavaleiro das Trevas e Amnésia.
Ele se debruçou na densa e longa biografia de Oppenheimer (ou apenas Oppie, para os íntimos) e traduziu boa parte dessa história em Oppenheimer, longa que estreia nos cinemas nesta quinta-feira, 20. Um filme complicado, que chega aos cinemas rodeado de desafios.
Dois desafios por trás de ‘Oppenheimer’
- O primeiro, que nasceu antes do lançamento, é compensar o orçamento de mais de US$ 100 milhões. Valor baixo se comparado a Indiana Jones e a Relíquia do Destino, por exemplo, mas alto se analisarmos o cenário do cinema: poucos lançamentos estão passando da marca dos US$ 500 milhões. Oppenheimer, ainda por cima, tem um complicado desafio de vencer a corrida pelo dinheiro do tíquete contra o aguardado Barbie e Missão: Impossível 7.
- O segundo desafio, quase tão complicado quanto esse primeiro, é justamente traduzir a história de J. Robert Oppenheimer para um filme que não apenas faça sentido, mas que também seja agradável de se assistir. Quem leu Oppenheimer: O Triunfo e a Tragédia do Prometeu Americano, biografia que inspirou o filme, sabe que não é algo simples. Não dá para preencher apenas fórmulas. Para cobrir toda a história, é preciso se desdobrar.
É isso que Nolan faz ao longo de exatas três horas de projeção. Oppenheimer conta com três histórias bem divididas, embora tenha aquela velha característica do cineasta e roteirista em repartir o tempo, com idas e vindas. São eles: os momentos iniciais de Oppie (Cillian Murphy) como físico, explorando possibilidades da física quântica na academia; a direção do Projeto Manhattan, que desenvolveu a bomba; e a inquisição que surge no pós-guerra.
Três em um
São praticamente três filmes distintos, em que Nolan coloca sua versatilidade como cineasta em jogo:
- Há o drama de Oppenheimer como um homem que carrega a culpa de ter criado uma arma de destruição em massa;
- há a tensão, com toques de cinema de thriller, com os testes da primeira bomba;
- há o filme de tribunal, que atravessa quase toda narrativa enquanto o físico norte-americano tenta se proteger de acusações de que seria um traidor.
Esses diferentes filmes, que habitam uma mesma história, contam com desempenhos bem distintos. A primeira hora de projeção, focada em desenvolver a personalidade de Oppenheimer e nos apresentar a mente desse homem que mudou a humanidade, é a mais densa, mas também a mais cansativa. Deve afastar parte do público, principalmente aquele que caiu de paraquedas na sessão depois de assistir a Barbie.
É um pedaço do filme que também sofre muito por conta da personalidade de Nolan. Ele, que filmou a história em película 70mm para IMAX, se coloca demais na história nesse início, com exagero de cenas entrecortadas, sequências abstratas e decisões narrativas que não agregam exatamente para o que a história está contando. É sofrível.
Depois dessa primeira metade, porém, o filme encontra seu coração. Nolan, enfim, descobre como brilhar com a história: diminui um pouco a ânsia de brincar com o tempo da narrativa e foca em construir (e desconstruir) Oppenheimer. Como diz no texto de abertura, e como bem sublinhou a biografia, é o Prometeu moderno. O titã que roubou o fogo dos deuses e entregou à humanidade – aqui, na figura do homem que explode a espécie.
Oppenheimer cresce quando Nolan entende a complexidade da trama e vai atrás não de destrinchar um momento da História, mas o homem que a transformou. O drama de Robert (não de Oppenheimer) é mais saboroso do que todo o resto. Afinal, é um judeu que, por mais que renegasse sua origem, criou a arma mais poderosa da Segunda Guerra Mundial. Motivo de comemoração? É brilhante a cena em que o físico vê que sua criação funcionou, quase sem nenhum percalço, mas se questiona: E agora? O que será do mundo, da vida?
Oppenheimer, o homem sem fim
Em determinado ponto de Oppenheimer, veio à mente Daniel Plainview, o protagonista de Sangue Negro, drama de Paul Thomas Anderson. É um homem obcecado, bastante determinado, que vê sua derrota a partir desses seus outros atributos. A loucura chega a partir de seu sucesso, mas também de toda a ideia que Plainview tinha de sua jornada.
É, guardadas as devidas proporções, a jornada de Oppenheimer. Ele é um homem dedicado, com ânsia de colocar seu nome na história e ajudar seu país. Mas será que é esse o caminho? Como ajustar seus ideais enquanto o progresso apenas acontece?
Cillian Murphy, que interpreta Oppie, não poderia estar melhor: o astro, conhecido por seu trabalho na série Peaky Blinders, entende quem é Oppenheimer e entrega uma atuação madura e consciente de sua complexidade emocional – ele acompanha corretamente todas as nuances do filme de Nolan. O mesmo vale para Robert Downey Jr., o intérprete do filantropo e empresário Lewis Strauss: irretocável e sabe como modular seu personagem.
O resto do elenco, com nomes como Emily Blunt, Matt Damon, Kenneth Branagh, Florence Pugh, Casey Affleck e até Rami Malek (que aparece em três cenas, duas delas sem diálogos), parece se contentar em aparecer no longa-metragem sem uma verdadeira profundidade.
Oppenheimer, assim, consegue vencer o hype: ainda que seja um filme com dificuldade para engrenar e que deve decepcionar parte do público, é um dos filmes mais maduros de Christopher Nolan, que assume os desafios e sabe fazer um filme denso sem cansar. Uma produção difícil, que não se rende aos maneirismos do cinema comercial, e que nos faz perceber que Oppenheimer está entre nós, como uma ameaça invisível que nunca quis ser.
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