A fábula do boneco de madeira que vira um menino de verdade nasceu na Itália oitocentista e espalhou-se pelo mundo. Mesmo antes da célebre adaptação da Disney, de 1940, Pinóquio era já lido em muitos países, Brasil inclusive, via Monteiro Lobato. Mas é verdade que, com o poder de difusão da maior indústria cinematográfica do mundo, o personagem criado por Carlo Collodi em 1881 tornou-se de fato universal.
O desenho da Disney tornou-se um clássico da animação por sua beleza e excelência de realização. É vivamente colorido, em contraste com as outras adaptações cinematográficas que optam pelos tons mais escuros, mais adequados ao clima da história. Mesmo formatado nos padrões “para toda a família” Disney, o desenho não escapa a certas situações soturnas. É verdade que atenuadas. Mas a própria estrutura da narrativa propõe uma experiência um tanto assustadora, sobretudo para o público infantil. Inevitável, por exemplo, em certas cenas famosas, como a do boneco procurando pelo pai no ventre de um ser marinho espantoso (uma baleia para a Disney, enorme tubarão, segundo outras adaptações). Ou quando os meninos desobedientes caem na tentação da vagabundagem e se veem transformados em asnos.
Como atenuar enredo tão tenebroso? Bem, através do uso de cores vivas, do humor, do tempo da sequência, dos detalhes mostrados e outros ocultados, de uma trilha sonora premiada com Oscar e de um conveniente happy end para compensar o sofrimento do percurso do herói.
É bastante provável que Collodi (nome verdadeiro, Carlo Lorenzini) tivesse uma intenção moralizante, pedagógica e civilizatória ao lançar seu personagem. Primeiro sob forma de folhetim, em jornal dirigido ao público infantil; depois em livro, Le Avventure di Pinocchio, publicado em 1883. A história, de tom moral, enaltece as virtudes da educação, da honestidade e do trabalho, e pune a malandragem, a mentira e a vadiagem.
Eram valores então idealizados em uma Itália tradicional, povo antigo reunido num país novo – o chamado Risorgimento, processo que deu unidade a uma coleção de pequenos estados, se completa em 1871. Era um país com dificuldades econômicas e zonas extensas de pobreza.
Esse ambiente de carência é devidamente apagado do desenho da Disney, mas forma o quadro de fundo das outras adaptações do livro. Comparece nas Aventuras de Pinocchio (Luigi Comencini, 1972), em Pinóquio e a Fada Azul, de Roberto Benigni (2003) e, de forma bastante acentuada, no soturno Pinóquio de Matteo Garrone (2019).
A fábula tornou-se universal e permanente não apenas por suas qualidades literárias, mas provavelmente porque toca e ilumina alguns desvãos obscuros da natureza humana. Em especial, a quantidade de sofrimento necessária ao processo de humanização. No ensaio clássico O Mal-Estar na Cultura, Freud descreveu o esforço de repressão de instintos necessário para o processo civilizatório. E a contrapartida de sofrimento que essa repressão traz à natureza rebelde do ser humano. Daí o inevitável mal-estar incrustado no cerne da civilização.
Collodi parece antever esse processo. Seu boneco falante é expressão de uma natureza anárquica, como ele próprio não deixa dúvidas. Em certo trecho, Pinóquio diz claramente que sua vocação é “Comer, beber, dormir, me divertir e vagabundear de manhã até a noite”. Mesmo amando o pai e com a Fada como protetora, terá de atravessar sua estrada de sofrimento até se tornar um ser humano de verdade.
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