Quando o diretor italiano Luca Guadagnino, 53, começou a procura pelo elenco de seu novo filme, Queer, o nome de Daniel Craig logo apareceu nas conversas. O ator de 56 anos havia encerrado sua jornada de cinco filmes como James Bond e o cineasta nem se atrevia a oferecer o papel, certo de que Craig diria não. Mas bastou apenas uma ligação de Bryan Lourd, agente de talentos americano, para que ele se interesse pelo projeto. Duas semanas depois, o contrato estava assinado.
Quem guarda a imagem de Craig como o icônico agente 007 ou até mesmo como o mais recente detetive Benoit Blanc, da franquia Entre Facas e Segredos, deve se surpreender com o trabalho do ator em Queer, que chega aos cinemas nesta quinta-feira, 12. Ele vive William Lee, um americano expatriado na Cidade do México dos anos 1950 que desenvolve uma paixão obsessiva pelo jovem Eugene Allerton (vivido por Drew Starkey, de Outer Banks).
A história é inspirada no livro homônimo e semiautobiográfico de William S. Burroughs (1914-1997), um dos principais escritores da geração beat. Lee serve como uma espécie de alter ego para Burroughs nesta e em outras obras que narram suas experiências com drogas e a homossexualidade, que ele escondeu até a idade adulta. Queer foi escrito em 1952, mas publicado somente em 1985 por conta da temática LGBT+.
“Li uma biografia de Burroughs e alguns dos seus livros. Falei com o acadêmico Oliver Harris, que é o maior especialista em Burroughs do mundo, que nos deu uma enorme quantidade de informação. Trabalhei no sotaque e nas falas e, depois, quando chegamos ao cenário, só torcemos para que tudo corresse bem”, conta Craig sobre a preparação para o papel, em uma entrevista online ao Estadão e outros jornalistas ao redor do mundo.
O trabalho certamente foi desafiador: Lee é um homem solitário, que pula de bar em bar em busca de alguma conexão, viciado em heroína e marcado por uma tragédia - o filme apenas faz alusões ao fato, mas Burroughs matou sua mulher, Joan, em um acidente com uma arma de fogo em 1951. Queer é também o mais explícito e erótico filme de Guadagnino até então, e os atores trabalharam com coordenadores de intimidade para gravar as cenas de sexo.
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O diretor afirma que Craig, mesmo tendo vivido uma das mais figuras mais associadas à masculinidade tradicional, se comprometeu desde o início com o papel: “Há estrelas e atores que dizem que sim e depois vão embora. Daniel é um cavalheiro, um homem de palavra. Uma pessoa séria”. O resultado tem sido elogiado pela crítica - foi aplaudido por 11 minutos após exibição no Festival de Veneza e na segunda, 9, Craig recebeu uma indicação ao Globo de Ouro pelo trabalho no longa.
Filme proibido
Por outro lado, Queer não passou ileso por polêmicas. No início de novembro, a Turquia baniu a exibição do filme em território nacional por “conteúdo provocativo que colocaria em risco a paz da sociedade”. Como resposta, a Mubi, serviço de streaming e distribuidora do filme internacionalmente, cancelou o Mubi Fest Istambul, que ocorreria na capital do país entre os dias 7 e 10 do último mês.
“Ainda estou me perguntando se eles realmente assistiram ao filme porque, se assistiram, acho que cometeram um erro, pois realmente deram uma plataforma a algo que, é claro, eles estão se opondo ferozmente”, ironizou o diretor, argumentando que o banimento gera mais impacto e curiosidade para a sociedade, e que mais pessoas vão ver o filme, seja viajando ou baixando-o ilegalmente.
Desejo e conexão
Diretor de Me Chame Pelo Seu Nome (2017) e de Rivais (2024), Guadagnino teve seu primeiro contato com o livro de Burroughs aos 17 anos e, desde então, sonhava em realizar uma adaptação da obra. Em vez de filmar em locação, o cineasta optou por erguer sua própria Cidade do México na Cinecittà, importante complexo de estúdios da Itália. Mais do que fazer um drama de época, ele queria reconstruir as imagens que o autor criou no livro e o que ele próprio visualizou em sua mente.
Essa construção também veio com uma boa dose de surrealismo, especialmente no segundo ato do filme, quando Lee convence Allerton a embarcar em “uma espécie de busca picaresca pela América do Sul”, nas palavras do diretor, atrás do ayahuasca, bebida com potencial alucinógeno. Lee, tomado pelo necessidade de compreender os sentimentos de Allerton, acredita que a substância pode oferecer poderes telepáticos.
Para Craig, “desejo e conexão são a raiz do filme”. Ele explica: “Ambos os personagens, Allerton e Lee, estão procurando por algo. Acho que a Cidade do México nos anos 1950 era um daqueles lugares onde as pessoas iam em busca de qualquer coisa: amor, drogas, liberdade. Mas a conexão entre eles está fora de sincronia. Eles simplesmente não estão no mesmo compasso. Não estão na mesma frequência.”
“Isso não significa que ambos não queiram se apaixonar um pelo outro ou que eles não desejam um ao outro. Os dois têm sentimentos muito fortes um pelo outro. Só não conseguem se comunicar. Essa é grande parte da jornada de Lee: encontrar essa capacidade de se comunicar, falar sem falar de fato, a telepatia, todas essas coisas”, completa o ator.
Caetano na trilha sonora
Quem assistir a Queer vai logo notar um nome familiar nos créditos de abertura: Caetano Veloso. O cantor é o intérprete, junto de Trent Reznor, da canção Vaster Than Empires, feita exclusivamente para o filme. A música foi escrita por Reznor e Atticus Ross com trechos das últimas entradas de diário do próprio William S. Burroughs. A faixa toca nos créditos finais do longa.
“Sou um grande admirador de Caetano desde criança e sempre sonhei em trabalhar com ele. E ter com ele uma espécie de relacionamento artístico”, diz Guadagnino, que lembra que usou a canção Pecado (1994) na trilha sonora de Rivais. “Quando estávamos na etapa de pós-produção, discutimos com Reznor e Ross sobre uma música final. Queríamos que fosse uma canção de amor dolorosa.”
“E então eu disse: ‘Acho que precisamos da voz de um homem mais velho que seja como uma lenda, da maneira como Burroughs foi - o material da lenda no final de sua vida [em referência aos diários]”. Propus Veloso e, para minha surpresa, Caetano aceitou. Mas ainda não o conheci pessoalmente. Espero muito, muito mesmo, encontrá-lo um dia em breve. Ele é fantástico. Ouço constantemente seu trabalho e sua música”, completa o cineasta.
Ouça a música cantada por Caetano Veloso em Queer
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