Os filmes de David Lynch são tão complicados que ninguém os entende ou, ao contrário, são muito simples, porque usam a primitiva linguagem dos sonhos como matéria-prima? Por certo você já ouviu as duas opiniões, e outras mais, porque a obra desse cineasta norte-americano, de 77 anos, vem sempre acompanhada de ideias e sentimentos contraditórios. Como se o artista zombasse das certezas, fizesse pouco das unanimidades e sentisse prazer com a perplexidade do público. Daí o interesse desta Retrospectiva David Lynch - de quinta, 2, a 12 de fevereiro, na Cinemateca Brasileira -, boa oportunidade para rever essa obra polêmica e tirar suas próprias conclusões.
Não se pode dizer que seja uma retrospectiva completa, mas é bem ampla. Com oito dos dez longas-metragens do autor e a primeira temporada de uma de suas séries mais badaladas, Twin Peaks, de 1990, oferece um panorama bastante largo da obra de Lynch. Do primeiro longa-metragem (Eraserhead, 1977) ao mais recente (Império dos Sonhos, 2006), incluindo os oito episódios de Twin Peaks, a retrospectiva contempla alguns dos motivos profundos da filmografia de Lynch, bem como de sua diversidade estética e temática.
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Artes plásticas
A primeira coisa a notar é a origem não cinematográfica do trabalho de Lynch. Ele começa pelas artes plásticas e a ela retorna nos anos recentes, como vem descrito no documentário David Lynch: a Vida de um Artista, não presente na mostra. Lynch teve boa educação visual (que, por incrível que pareça, falta a muitos cineastas) e aprendeu a dar valor a imagens oníricas que lhe surgiam como mensagens vindas do inconsciente.
Desse modo, quando, ao ganhar uma bolsa de estudos do American Film Institute, consegue realizar seu primeiro longa, fará deste trabalho de estreia um campo de experimentação de suas ideias mais inquietantes. Eraserhead, fotografado em preto e branco, é um filme estranho, dos mais esquisitos da obra do diretor. Um personagem verte de sua boca uma aparição fantasmagórica e, a partir daí, vê-se em situações surrealistas.
Não menos estranho é Império dos Sonhos, de quase 30 anos depois. Laura Dern, atriz-fetiche do diretor, está em busca de um filme que descobre ser remake de uma obra inacabada. Império dos Sonhos pode ser visto como amostra da atividade mental fragmentada dessa atriz, mas essa é só uma das possibilidades de interpretação. Apresentado no Festival de Veneza, deu ocasião a um debate animado. Um jornalista insistiu com Lynch para que dissesse qual era afinal o sentido do enigmático filme. Este o aconselhou: “Não se intimide. Use a intuição. Lembre-se de que o cinema vai além das palavras. Busque a experiência, não o sentido”. E mais não disse. Cada um interprete como quiser. Ou como puder.
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Outros títulos
Entre Eraserhead e Império dos Sonhos, Lynch realizou alguns trabalhos de sucesso, como O Homem Elefante, Veludo Azul, Coração Selvagem e História Real. O Homem Elefante (1980) busca a humanidade profunda de um inglês acometido por uma doença deformante. Em Veludo Azul (1986), um neonoir terrorífico, um rapaz interessa-se por uma cantora chantageada por criminosos. Coração Selvagem (1990) rendeu-lhe a Palma de Ouro em Cannes com uma história de amor pontuada por desvarios e violência. A História Real mostra um homem indo ao encontro do irmão a bordo de um tratorzinho de cortar grama. O enredo é tão banal que pode ser considerado o filme mais estranho da filmografia de Lynch. Pelo menos, o mais inesperado.
Em paralelo, Lynch não deixou de apresentar outros mais próximos do universo estranho que o seduz, como A Estrada Perdida (1997), Cidade dos Sonhos (2001) e o já citado Império dos Sonhos. São obras construídas com imagens límpidas, quase singelas, acompanhadas, em geral, pela música de Angelo Badalamenti. A pureza da forma reforça o ambiente fantástico de fundo.
Já a série de TV Twin Peaks marcou época. No começo dos anos 1990, a pergunta recorrente no mundo pop era uma só: “Quem matou Laura Palmer?” Ninguém sabia a resposta, mesmo porque manter o mistério é a alma do negócio e a identidade do assassino da garota, famosa por sua beleza e vivacidade, continuava desconhecida a cada capítulo da série mais comentada do ano. O interesse não está apenas na solução do crime, mas em toda a cidade fictícia de Twin Peaks, com seus 50 mil habitantes. Uma espécie de microcosmo distópico do sonho americano falido, com seus vícios, ressentimentos e taras inconfessáveis, sob uma capa de placidez e normalidade. O crime é apenas o sintoma mais visível do mal-estar profundo da comunidade.
Freud, que chamava os sonhos de “caminho real” para o inconsciente, dizia que um sonho não interpretado é como uma carta não aberta. Vale a pena mergulhar na obra onírica de David Lynch e deixá-la falar dentro de nós.
Melhores dicas
Veludo Azul (1986)
Filme de culto de Lynch, inspira-se na canção Blue Velvet, que pontua todo o roteiro. Um rapaz descobre uma orelha decepada em um terreno baldio e, a partir disso, mergulha na estranheza de uma cidade em que ninguém é como parece ser, a começar pela cantora vivida por Isabella Rossellini.
Coração Selvagem (1990)
Filme premiado com a Palma de Ouro em Cannes, sobre a fuga de dois namorados, Sailor (Nicolas Cage) e Lula (Laura Dern). História de amor bandido, com muita violência, mas também muita paixão.
A Estrada Perdida (1997)
O saxofonista Fred Madison (Bill Pullman) suspeita que sua esposa o está traindo. Quando ela aparece morta, Madison é preso e, na cadeia, passa a ter alucinações.
História Real (1999)
Quando se pensava que Lynch jamais faria um filme “normal”, ele aparece com este, de trama linear, um road movie lírico e naturalista. Um homem idoso vai ao encontro do irmão doente, pilotando um tratorzinho cortador de grama. Como em todo road movie, coisas vão acontecendo pela estrada e expandindo a consciência do viajante.
Cidade dos Sonhos (2001)
Após um acidente de carro, mulher se torna amnésica. Tenta descobrir algo de seu passado, dividindo-se entre fatos reais, fantasia e sonhos.
Império dos Sonhos (2006)
Ápice da estética surrealista de Lynch, o filme mostra uma prostituta chorando após um encontro sexual violento. Na TV, ela assiste a um show de coelhos antropomórficos, que dizem frases misteriosas. O filme segue o tempo todo o registro dos sonhos, com ligações surpreendentes entre imagens, sons e diálogos. Para ser usufruído, é preciso que o espectador entre no jogo
Confira a programação completa da mostra Retrospectiva David Lynch
02/02 (quinta-feira):
17h00 | Sala Oscarito
Twin Peaks | T01 E01 (1990) | digital
19h30 | Sala Grande Otelo
Eraserhead (1977) | digital
03/02 (sexta-feira):
17h00 | Sala Oscarito
Twin Peaks | T01 E02 (1990) | digital
20h00 | Sala Grande Otelo
O Homem Elefante (1980) | digital
04/02 (sábado):
17h00 | Sala Oscarito
Twin Peaks | T01 E03 (1990) | digital
20h00 | Sala Grande Otelo
Veludo Azul (1986) | digital
05/02 (domingo):
17h00 | Sala Oscarito
Twin Peaks | T01 E04 (1990) | digital
19h00 | Sala Grande Otelo
Coração Selvagem (1990) | 35mm
09/02 (quinta-feira):
17h00 | Sala Oscarito
Twin Peaks | T01 E05 (1990) | digital
19h00 | Sala Oscarito
Estrada Perdida (1997) | digital
10/02 (sexta):
17h00 | Sala Oscarito
Twin Peaks | T01 E06 (1990) | digital
18h30 | Sala Oscarito
História Real (1999) | digital
11/02 (sábado):
17h00 | Sala Oscarito
Twin Peaks | T01 E07 (1990) | digital
18h00 | Sala Grande Otelo
Cidade dos Sonhos (2001) | digital
12/02 (domingo):
17h00 | Sala Oscarito
Twin Peaks | T01 E08 (1990) | digital
18h00 | Sala Oscarito
Império dos Sonhos (2006) | digital