Após a bem-sucedida programação comemorativa do centenário de nascimento de Alain Resnais, a Cinemateca Brasileira promove agora outra grande mostra, e desta vez celebrando a própria entidade mantenedora da instituição. Em 1957, após o primeiro incêndio da Cinemateca, Paulo Emílio Sales Gomes, um nome histórico em defesa da cinefilia no Brasil, iniciou sua pregação. Dizia que era necessário integrar a Cinemateca na vida social e institucional do País, até como forma de garantir sua sobrevivência. Cinco anos mais tarde, em 2 de julho de 1962, surgiu a Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC), com o compromisso de continuar participando do que Paulo Emílio considerava “o mais importante fenômeno de aprofundamento da cultura democratizada no mundo moderno – a aproximação cultural pelo cinema”. São 60 anos da SAC, cujo primeiro presidente, o publicitário e exibidor Dante Ancona López, criou o conceito do cinema de arte em São Paulo, ao fundar o Cine Coral. Dante privilegiava filmes que, nas palavras dele, geravam polêmica, possuíam valor estético e apresentavam um testemunho político-social. Com base nesse tripé – espetáculo, polêmica, cultura –, a nova programação gratuita da Cinemateca apresenta, a partir desta quinta, 30, e até 10 de julho, uma seleção de filmes dividida em três blocos. Grandes estreias nacionais e grandes estreias internacionais, com filmes brasileiros e estrangeiros lançados pela SAC em São Paulo, nos anos 1960, e um terceiro bloco com os filmes exibidos na inauguração das salas.
Como destaque do primeiro bloco, a joia da seleção é o clássico cinema-novista de Glauber Rocha Deus e o Diabo na Terra do Sol, na versão restaurada em 4K que passou em Cannes Classics, em maio. Guarde a data, dia 6. Prepare seu coração. Desde as cenas iniciais, ao som da trilha de Sérgio Ricardo, com os versos imortais do próprio Glauber (“Manuel e Rosa vivia no sertão / Trabalhando a terra com as próprias mão”), até a corrida final de Manuel (“O sertão vai virar mar”), as imagens e sons batem na tela com uma beleza e intensidade nunca vistas. No segundo bloco, as grandes estreias internacionais vão resgatar o marco inicial do surrealismo, segundo Luis Buñuel – Um Cão Andaluz, de 1928 –, e também Mickey One, de Arthur Penn, Os Subversivos, dos irmãos Taviani, e O Momento da Verdade, de Francesco Rosi, mais três filmes que impuseram o cinema polonês como um dos maiores do mundo: Cinzas e Diamantes, de Andrzej Wajda, A Passageira, de Andrzej Munk, e Faraó, de Jerzy Kawalerowicz.
Embora feito em 1958, Cinzas e Diamantes chegou ao Brasil só nos anos 1960, com a imagem impactante da igreja destruída e da cruz invertida, com o Cristo de cabeça para baixo. O mundo que perdeu as referências e os valores eram os de 60 anos atrás, ou o atual? Finalmente, as estreias em salas administradas pela SAC a partir de 1962. A deliciosa comédia de Luigi Comencini, Esses Maridos; o poderoso drama desmistificador do código dos samurais de Masaki Kobayashi, Harakiri; e O Martírio de Joana d’Arc, ou da intérprete do papel, Falconetti, na obra-prima de Carl Theodor Dreyer, que reinaugurou a Sala Cinemateca em sua fase na Rua Fradique Coutinho. No dia 6, após o Glauber, haverá um debate sobre cinefilia com Carlos Augusto Calil e Ignácio de Loyola Brandão, colunista do Estadão. Durante o evento, a família fará entrega do acervo de Dante Ancona para ser integrado ao patrimônio da Cinemateca, que é seu lugar.
DESTAQUES
Deus e o Diabo na Terra do Sol O clássico de Glauber Rocha e do Cinema Novo será apresentado em cópia restaurada em 4K. Um Cão Andaluz Cena do corte do olho com a navalha é o marco surrealista de Luis Buñuel. Cinzas e Diamantes O polonês Andrzej Wajda e seu cinema político. Harakiri Prêmio do júri em Cannes para o japonês Masaki Kobayashi, no ano marcado pela presença de O Leopardo, de Luchino Visconti. A Passageira O holocausto no clássico inacabado pela morte do diretor Andrzej Munk. A Hora e a Vez de Augusto Matraga Obra de Guimarães Rosa, revista pela estética samurai de Roberto Santos. O Martírio de Joana d’Arc Os primeiros planos de Carl Theodor Dreyer, com o rosto sofrido da atriz Renée Falconetti, são inesquecíveis.
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