A odisseia de um nativo do Sri Lanka que cria uma falsa família para fugir da guerra civil em seu país e emigrar para a França – e que, na Europa, estabelece verdadeiros laços familiares, mas enfrenta uma outra guerra. Tal é a história de Dheepan, o longa de Jacques Audiard que ganhou a Palma de Ouro em Cannes, em maio. Se você pensa que a imprensa francesa exultou com a vitória, engana-se. Cahiers du Cinéma desdenhou. Segundo a revista, é a prova de que a persistência compensa. Audiard teve tantos filmes na competição de Cannes que era só uma questão de tempo até ele achar o júri ‘adequado’ para vencer. Os irmãos Coen presidiam o júri deste ano. O restante da imprensa mundial aplaudiu.
Como sempre, o cinéfilo corre em busca de filmes que têm distribuição garantida. Querem ver logo as obras que fizeram sensação, ou provocaram polêmica nos maiores festivais. Criador da Mostra, Leon Cakoff dizia o que sua companheira, na arte e na vida, Renata de Almeida, hoje repete – o ideal de quem faz a seleção do evento é que o público acredite. Todos os 312 filmes selecionados merecem ser vistos. Arrisque. Compre o ingresso para não importa qual filme. Você poderá ter boas surpresas – além da sensação de estar descobrindo (você!) alguma coisa nova.
Para quem prefere apostar no certo – mas o certo, segundo o raciocínio de Cahiers, pode ser duvidoso, às vezes pelo menos –, há o Volume 2 de As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes. O Desolado é o melhor filme da trilogia, que integrou a seção Quinzena dos Realizadores, em Cannes. Não por acaso foi indicado por Portugal para concorrer a uma vaga no Oscar de filme estrangeiro (com Son of Saul, do húngaro Laszlo Nemes, entre outros programas da Mostra). As Mil e Uma Noites usa a crise que assola Portugal como matéria para afirmar a grande arte do diretor. E tem mais – Ixcanul, do guatemalteco Jayro Bustamante, outro indicado do Oscar; Volume 1 – O Inquieto, e os filmes da trilogia As Mil e Uma Noites podem se completar, mas são independentes; A Virgem Juramentada, de Laura Bispuri, com a excepcional Alba Rohrwacher.
Na Albânia, para fugir a uma vida de submissão, uma mulher invoca o Kanun, o código de honra. Adquire identidade masculina, pode manusear o fuzil, mas paga um preço. Igual entre os homens, tem de se manter virgem. É a libertação, mas também o tormento para a personagem, que migra para a Itália, em busca de outra vida. A garota de Ixcanul é forçada a um casamento arranjado, mas engravida de outro homem. Invoca o deus do vulcão e, ao longo do relato, também migra para a cidade. O tema da migração está em toda parte. O tamul de Dheepan emigra para a França. Como só famílias estão recebendo visto, Anthonyt Jesuthasan, escritor que faz o papel, escolhe uma mulher e uma garota com idade para ser sua filha. E é com essa família falsa que desembarca na França, fugindo da guerra.
Cai em outra guerra – a das gangues da região em que vai viver. Conhece o preconceito contra os imigrantes. Jacques é filho de Michel Audiard, roteirista que, nos anos 1950, representava para o então crítico François Truffaut, em Cahiers, o tal cinema de qualidade que ele amava fustigar. A rejeição da revista, pelo visto, é à família.