Setembro passou e não houve Festival de Brasília. O Festival do Rio, sem recursos, teve de transferir sua data para dezembro e a Première Brasil, grande vitrine do cinema brasileiro, corre o risco de sair bem menor que de costume. Por tudo, a 43.ª Mostra, que começa hoje, 17, para o público – e segue até 30 –, assume uma importância maior que nunca para a produção nacional. Dos 300 filmes anunciados, 60, ou 1/5, são brasileiros, a maioria em estreia nacional. Um e outro já passou no Cine Ceará, em Gramado, mas a Mostra acolhe mesmo esses títulos – a preferência é sempre para inéditos –, porque, afinal, concorrem a um prêmio em dinheiro. Sim, nesse quadro de torneiras fechadas do Governo Federal, a Mostra está conseguindo manter não só o calendário, mas a extensão e até valores agregados aos prêmios para a produção nacional.
São 60 filmes, vale repetir: 60! A programação inicia-se nesta quinta com Macabro, de Marcos Prado, fotógrafo premiado, diretor e produtor cujo nome esteve associado ao de José Padilha nos dois Tropa de Elite. O próprio Prado realizou Estamira e Paraísos Artificiais.
Estreia na Mostra Macabro, cuja trama se passa na década de 1990, contando a história de dois irmãos que foram acusados pelo assassinato de oito mulheres, um homem e uma criança na região da Serra dos Órgãos. Mais que uma contribuição do diretor ao cinema de gênero que cresce no País, Macabro centra-se na crise de consciência do sargento militar que investiga o caso. Na cola dos supostos criminosos, Renato Góes percebe que o julgamento da imprensa e o racismo da sociedade condenaram os irmãos, mesmo que ele tenha sérias dúvidas sobre o envolvimento de um deles.
Mais escancaradamente de gênero, Juízo, de Andrucha Waddington, terá sua estreia na Mostra no fim de semana – no sábado, 19. Andrucha dirige um roteiro da mulher, Fernanda Torres. Terror familiar? Felipe Camargo está em crise no casamento com Carol Castro e a vida aviltada pela bebida. Em busca de reerguimento, muda-se com a mulher e o filho – Joaquim Torres Waddington, filho do diretor e da roteirista, estreando no cinema – para uma fazenda que herdou, e aí, sim, as coisas que já não andam boas complicam-se ainda mais. O lugar carrega um histórico de violência, com registros de traições e mortes por vingança. Entram em cena Lima Duarte e a sogra do diretor, Fernanda Montenegro, que ele já dirigiu anteriormente em Gêmeas e Casa de Areia.
Fernanda, que festejou 90 anos nesta quarta, 16, terá na sexta, 18, seu grande dia na Mostra. Em parceria com o Theatro Municipal, que fornece seu palco, haverá uma sessão – de gala, por menos que a diretora e curadora artística Renata de Almeida não goste da palavra – de A Vida Invisível, agora definitivamente sem o acréscimo de Eurídice Gusmão no título.
Eurídice é a protagonista do longa de Karim Aïnouz produzido por Rodrigo Teixeira e que foi escolhido como representante do Brasil na disputa a uma vaga no Oscar de melhor longa Internacional – nova denominação para Estrangeiro. Em maio, A Vida Invisível venceu o prêmio da mostra Un Certain Regard no Festival de Cannes. Conta a história de duas irmãs separadas pela brutalidade de um pai e um marido.
Karim, grande diretor – de Madame Satã, O Céu de Suely e Praia do Futuro -, sempre quis fazer um filme sobre a geração de mulheres como sua mãe, que o criou sozinha, em Fortaleza, numa época em que o casamento, e o marido, definiam a posição social da mulher. O filme é bom, sem sombra de dúvida, mas dispara, elevando-se, no impressionante último ato, quando Fernanda entra em cena. Vale lembrar a Dora, de Central do Brasil, de Walter Salles, pelo qual Fernanda foi melhor atriz em Berlim e indicada para o Oscar.
Dora escrevia aquelas cartas. Agora, outras cartas ajudam a destrinchar a história que Karim adaptou do livro de Martha Batalha. A expectativa é de que a discussão sobre a condição das mulheres, em tempos de empoderamento e #MeToo, fortaleça a candidatura do filme e o Brasil, e Fernanda – como coadjuvante –, voltem ao Oscar.
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