Enquanto comédia e drama andam a passos largos no Brasil, não dá para dizer o mesmo do “cinema de gênero”. Cineastas concordam que não é fácil explorar novas linguagens no País – faltam recursos, incentivos e por aí vai. O terror é o gênero que está ganhando espaço nos últimos anos, com Juliana Rojas, Marco Dutra e Gabriela Amaral Almeida, mas ainda falta mais fôlego para ação, aventura, ficção científica e, claro, a comédia romântica.
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Esse último gênero, sucesso absoluto em Hollywood desde pelo menos os anos 1930 com Aconteceu Naquela Noite, parece não ter uma cara própria no Brasil. Até surgem lançamentos aqui e acolá, principalmente no streaming, mas não deixam de ser remakes ou cópias pasteurizadas do que é feito nos Estados Unidos. Cadê o Brasil na comédia romântica? É aí que entra a produtora Filmes de Plástico para mostrar o caminho a seguir.
O Dia que Te Conheci, em cartaz nos cinemas, é o novo lançamento da produtora mineira, que coleciona fãs e ótimos filmes como Marte Um e No Coração do Mundo. O longa, dirigido pelo sempre talentoso André Novais Oliveira (de Temporada e Ela Volta na Quinta) tem uma proposta simples: mostrar um dia na vida de Zeca (Renato Novaes), um homem com uma dificuldade imensa em acordar e que precisa correr, sempre que perde o horário do ônibus, para trabalhar como bibliotecário numa escola longe de BH.
“Queria fazer algo mais ‘breve’ e trabalhar com uma equipe menor para produzir um filme que não precisasse de um aparato enorme por trás para apresentar uma narrativa completa”, conta André, em seu terceiro longa, ao Estadão. “Em 71 minutos, conhecemos os personagens e, de certa forma, entendemos o que está acontecendo em suas vidas sem apresentar temas grandiosos. O drama pode ser visto como ‘pequeno’, mas na minha opinião reflete os problemas diários que muitas pessoas passam, principalmente sozinhas.”
Novos significados
O diretor pode até não ver O Dia que Te Conheci exatamente como comédia romântica, mas é impossível não encontrar ali os signos de que surgem da memória cinematográfica que temos com o gênero. São os encontros desajeitados, o romance que surge no olhar, a conversa fiada. Dá até para ver algo de Antes do Amanhecer nas primeiras palavras trocadas por ele e Luísa (Grace Passô), funcionária da escola que lhe dá uma carona.
Aliás, nada de cinema americano – por melhor que seja, nessa comparação com a obra-prima de Richard Linklater. O Dia que Te Conheci é brasileiro. Brasileiríssimo! Os personagens enfrentam o ‘corres’ do dia a dia que não vemos no estrangeirismo romântico que chega por aqui: Zeca precisa correr atrás do ônibus, aproveita a parada para comer um pastel, faz amizade no ponto de ônibus, toma uma cerveja em um copo americano na rua.
André pega o gênero e toma conta. “Quando nós brasileiros criamos obras dentro desses gêneros tão associados a outros países, temos a oportunidade de imprimir nossa própria realidade e valores sociais nas telas, nossos maneirismos e nosso jeito de falar mesmo”, diz.
Ele segue: “Desenvolver nossa linguagem própria ajuda a nos tornarmos menos dependentes desses moldes estrangeiros de como fazer cinema, e criar algo genuíno em vez de só adaptar fórmulas que já existem. Ver personagens comuns vivendo cenas do cotidiano e inserir isso em uma comédia romântica é muito importante porque traz empatia e identificação ao público e ainda pode de alguma forma ajudar a redefinir o gênero”.
Psicologia do romance
O ponto alto do filme, e que coloca O Dia que Te Conheci em um outro patamar de cinema, é quando André Novais de Oliveira passa a entender os caminhos desse romance. Tudo nasce a partir de um ônibus perdido por dormir demais – fazendo referência aos inúmeros filmes americanos de casais formados por táxis perdidos e por aí vai. Mas o que causou esse atraso? O que fez com que Zeca não conseguisse acordar e chegar na hora no ponto?
A partir daí, Oliveira insere mais humanidade na trama. Mais verdade. Discussões por problemas mentais surgem. Tudo muito natural – assim como a cena atrapalhada em que Zeca e Luisa vão pra cama.
“Acho muito importante falar sobre saúde mental e normalizar as conversas sobre esse assunto, principalmente entre a população preta”, afirma André. O diretor explica que o filme reflete uma vivência pessoal dele e parte também de uma reflexão acerca da quantidade de pessoas fazendo tratamento com psiquiatra e tomando remédios. Enfim, da saúde mental do brasileiro.
Ele finaliza: “Falar sobre relacionamentos entre pessoas pretas é uma coisa interessante, assim como trazer à tona a saúde mental dessas pessoas de uma forma respeitosa. Ver pessoas pretas sendo retratadas de forma respeitosa nas telas é muito político”.
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