Não foi sem nervosismo que o cineasta Blitz Bazawule aceitou a empreitada de levar novamente A Cor Púrpura ao cinema. Não era para menos: a primeira vez que o livro de Alice Walker virou filme foi pelas mãos de Steven Spielberg, em 1984. E foi um fenômeno.
O diretor chegou a duvidar se ele seria a pessoa indicada para a tarefa, e admitiu em entrevista ao Estadão que isso se devia “1000%” à síndrome do impostor. Ele tinha sido responsável, antes, pelo projeto Black is King, da ultraperfeccionista Beyoncé. “É difícil, mas você tem Beyoncé: a máquina, a artista, a megaestrela. Eu meio que poderia me esconder atrás dela um pouco. Aqui, seria apenas eu”, afirmou Blitz.
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O novo desafio, no entanto, partia de algo já criado e recriado. O filme que chega nesta quinta-feira, 8, ao cinema, é uma adaptação do musical da Broadway vencedor do Tony — o qual remete à história criada por Alice Walker — terreno dominado por Blitz anteriormente.
A conversa com o diretor ocorreu no início de novembro de 2023, quando Blitz veio ao País em agenda discreta de divulgação prévia do longa - e antes de a produção ser esnobada pelo Oscar. Apenas Danielle Brooks foi indicada na categoria melhor atriz coadjuvante. O filme de Spielberg teve 10 indicações, mas no fim das contas ele também foi esnobado e não levou nenhuma estatueta. A cerimônia ocorre em 10 de março.
As origens
Ambos os filmes têm o clássico romance de Alice Walker no DNA. E Blitz diz que reler o livro foi o que o fez aceitar o convite da Warner em 2020 para refilmar a história.
Ele pensou que poderia abordar a história de uma nova forma, já que sentia faltar algo à versão original.
“Havia uma parte da jornada de Celie que não havíamos explorado completamente. A jornada na mente dela para se tornar uma mulher livre”,
conta Blitz.
Para quem não se lembra ou ainda não conhece o enredo, A Cor Púrpura conta a — nada leve — história da sofrida Celie. Estuprada pelo próprio pai e afastada dos dois filhos gerados nesses abusos, ela é obrigada a casar com Mister, um homem vivendo à sombra do pai, frustrado e violento, que a agride e expulsa a irmã dela de casa após ter sido rejeitado por ela.
Celie, então, passa o resto da vida criando os filhos do primeiro casamento de Mister, sujeita a todo tipo de humilhação e isolamento. Até que começa a perceber que há mais no mundo para tirá-la desse tormento.
‘Eu nunca faria isso de novo’
A visão de Blitz, também por ser um musical, é muito mais solar e animada, enquanto a de Spielberg vale-se do drama e da angústia reflexiva o tempo todo. O esforço de se distanciar da obra do astro hollywoodiano é claro. E não é por acaso.
“Estamos tentando criar algo especial, único, que tenha a própria identidade, tecido, toque e textura”, disse Blitz. Este, inclusive, foi um dos motivos da escolha do diretor para o projeto. Ele conta que perguntou a Spielberg o que faria diferente, e a resposta foi direta. “Eu nunca faria isso de novo”, teria dito o cineasta. “Encontraria alguém mais próximo da história e seria apenas um apoiador”.
Spielberg elogia Blitz em material de divulgação do longa. “Ele seria a escolha perfeita para dirigir este filme”, declarou, em parte por Blitz ter raízes africanas. Mas não só.
Nascido em Gana, ele é, além de cineasta, escritor, artista visual, rapper, cantor, compositor e produtor musical. E, aos 41 anos, é visto como alguém conectado com as questões sociais que se impõem no século 21 — já presentes no livro de Alice de 1982, premiado com Pulitzer no ano seguinte. “Poder dizer: vejam como não avançamos tanto” foi, como o diretor coloca, outro motivo para aceitar o trabalho.
Mas o conselho recebido do mestre foi mais sutil e significativo do que poderia-se esperar. “Se eu tivesse que fazer isso de novo, escolheria uma casa diferente para Mister”, teria dito Spielberg, que continuou: “Sinto que a casa que escolhi para Mister não era representativa de quem ele era. Era muito grande, muito colonial, tinha coisa de mais”.
Com isso em mente, Blitz foi atrás de um lugar pequeno, desgastado como a personagem, e rodeado por um terreno maior para a plantação da qual vive. “Mais adequado a ele”, afirma Blitz.
O espaço tem grande importância na história, pois é onde se passa a maior parte do filme e também simboliza o ambiente mental das personagens. “Esse foi um grande conselho que ele me deu”, revela o cineasta.
História clássica, temas contemporâneos
A trama inteira é permeada pelas cicatrizes da escravização. A narrativa toma lugar no início dos anos 1900, pouco mais de 40 anos após a abolição da escravidão. Mas o racismo é só uma das estruturas centrais do conto.
“Essas questões que abordamos neste filme ainda são predominantes na sociedade. Começando, é claro, pela violência de gênero, discriminação racial, classe social, orientação sexual”, aponta Blitz. Nesta última, no entanto, ele se aprofunda pouco, a exemplo de Spielberg.
O americano é criticado há quatro décadas por, digamos, suavizar a relação entre a protagonista Celie e Shug Avery - justamente a pretendente de Mister. O livro é até bem explícito ao indicar que elas não trocaram o mero selinho que ambos os diretores levam à tela.
Inclusive, a atriz Seyi Omooba chegou a perder o papel em uma adaptação teatral de A Cor Púrpura, para a qual estava escalada como protagonista no Reino Unido, após uma publicação de caráter homofóbico nas redes sociais. “Não acredito que homossexualidade seja correto”, postou em 2014, quando tinha 20 anos.
Na história, a aproximação das duas mulheres é fundamental para o destino de Celie, embora Blitz aponte que não queria retratar personagens em situação de trauma como pessoas dóceis à espera de salvadores. O filme de Spielberg, aliás, é mais competente em criar essa dualidade enquanto acumula silenciosamente a tensão que precede a explosão da protagonista.
“Acho que elas tomam iniciativas, pelo menos nas próprias mentes”, reflete Blitz sobre o trajeto até a libertação. “Você não faz isso sendo passivo, faz tentando ativamente descobrir um meio”, completa. Para ele, esse é o paralelo com o enfrentamento às discriminações, especialmente o racismo.
“Você não pode forçar ninguém a tratá-lo com respeito. Antes de tudo, é importante que sejamos capazes de nos ver através de nossas próprias lentes. Você pode se tratar com respeito, valor e coragem. Com o tempo, você é capaz de impor a questão”, explica.
Responsabilização e perdão
De acordo com Blitz, o que os povos descendentes de pessoas escravizadas buscam no mundo é aquilo que Celie procura naqueles que abusaram dela: responsabilização. A personagem usa do que o diretor chama de “perdão radical”, o que ele enxerga como a subtrama da narrativa.
“Não se alcança o tipo de liberdade que Celie acaba alcançando sem um coração profundo para perdoar”,
afirma.
Mas isso só vem quando os que a violaram assumem a responsabilidade pelos próprios atos e agem de forma reparadora. Só que ele também não descarta da análise os contextos em que cada um foi criado e aquilo que tiveram de viver. “Pessoas feridas ferem pessoas”, diz.
O cenário não poderia ser mais propício. Celie vive na Geórgia, um dos estados do Sul dos Estados Unidos mais emblemáticos para representar a segregação de pessoas negras e a resistência dos grupos em protesto pelos direitos civis igualitários no País.
Próximo de lá, no Mississipi, cresceu Oprah Winfrey. Ela também viveu nessas áreas rurais do sul americano e interpretou Sofia na primeira versão de A Cor Púrpura, tendo sido indicada a melhor atriz coadjuvante — mesma personagem pela qual agora Danielle Brooks concorre na categoria.
Oprah é produtora do filme e atuou muito nos bastidores, de acordo com Blitz. “Uma guia espiritual para nós. A presença dela foi muito valiosa”, relembra o diretor.
Um cinéfilo que quer fazer o cinema avançar
Uma das contribuições que ele espera ter trazido para o combate ao racismo estrutural e à produção cinematográfica é traduzida na tela. Importante lembrar que houve um momento em que a indústria decidiu aprimorar a tecnologia de fabricação das películas de filmagem e fotografia favorecendo a captação de luz refletida em peles brancas.
Essa foi uma preocupação de Blitz, trabalhando com um elenco predominantemente preto. “Uma delas [das contribuições] é na fotografia de pessoas negras. Acho que isso é muito subestimado. Quando você assiste a muitos filmes, você se esquece de que não há muita intenção em iluminar a pele negra. E isso foi algo sobre o que Dan Laustsen [diretor de fotografia] e eu conversamos muito “, conta.
Outro elemento foi o caráter musical, cujas canções por vezes brotam do nada em produções do gênero. “Fizemos totalmente o oposto”, crava o diretor, que afirmou sempre buscar por cadência nas filmagens. “O negócio sobre pessoas negras, pardas, indígenas é que tudo é rítmico”, sustenta.
Não surpreende que a cena que ele diz mais ter a ver consigo envolve um gigantesco gramofone, como alegoria à imaginatividade de Celie, ou a chegada apoteótica de Shug pela água. “É a minha cara”, revela.
“Estou sempre pensando nesses momentos cinematográficos insanos. É assim que vejo o mundo, através de cores vivas e momentos realmente imaginativos e preciosos”, compartilha Blitz. O que faz sentido também pela relação que estabelece com o cinema.
Cinéfilo desde criança, a mágica da tela grande sempre foi algo que encantou Blitz. E tem muito a ver com isso a outra sequência de A Cor Púrpura, que ele elege como a preferida. “Amo quando filmes estão dentro dos filmes”, conclui.
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