A certa altura do documentário Milton Bituca Nascimento, que chega aos cinemas nesta quinta-feira, 20, o produtor Quincy Jones (1933-2024), o cara que traduziu o pop para o mundo, sentencia: “Acho que Deus deixou a mão sobre eles um pouco mais”. Quem são eles? Miles Davis, Dizzy Gillespie e Milton Nascimento.
Notem: Miles e Dizzy, dois grandes nomes do jazz mundial. E Milton? Faz jazz? Essa é uma das perguntas que guiam o filme de quase 120 minutos, dirigido por Flavia Moraes, de Acquaria (2003) e Cartola Para Todos (2009), que divide o roteiro com o jornalista Marcélo Ferla. A discussão não é fácil - e o documentário é muito honesto em mostrar que enquadrar a música feita por Bituca pode não resultar em uma resposta lógica. E isso gera um confortável impasse.
A estrada que a diretora e roteirista pegaram foi a de acompanhar a turnê de despedida de Milton dos palcos, a Última Sessão de Música. A excursão começou na Europa, onde passou por países como Inglaterra, Itália, Espanha e Portugal, migrou para os Estados Unidos - onde fez as duas costas -, até chegar para as derradeiras apresentações no Brasil. O ato final foi no Estádio do Mineirão, em Belo Horizonte, em 13 de novembro de 2022.
Nesse caminho, ouviram cerca de 40 entrevistados. Além de Quincy, estão Wayne Shorter, Paul Simon, Spike Lee, Herbie Hancock, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, João Bosco, Mano Brown, Esperanza Spalding, Lô Borges, Márcio Borges, Simone, Djonga, Djamila Ribeiro, Maria Gadú, entre outros.
Ao todo, foram cerca de dois anos e meio de trabalho. “Milton é um turbilhão de emoções. O Brasil que deu certo. Ele traz esperança para as pessoas. É um predestinado.”, diz Flavia ao Estadão. “Mais do que um documentário, ele é um road movie. Nos propusemos ao risco, seguindo Milton. Todas as surpresas que ocorreram no caminho, seja a narrativa ou as cores desse retrato, vão se definindo ao longo da nossa trajetória”, completa a diretora.
“Se o Milton faz jazz? O que é o jazz?”, questiona Ferla. “Tudo o que se pensa antes (no roteiro), se desmonta. É uma estrada mesmo, na qual vamos tentando entender para onde ir”.
Tal como um tema de jazz, explica a diretora. “Esse filme foi um pouco isso. Os instrumentistas tocando, a partir de um tema (o Milton)”, diz Flavia. “As possibilidades eram tantas que me tiraram o sono. Quando escolhemos não fazer escolhas, ficamos em um vácuo - e ele te permite a ser muito orgânico. O recorte foi viajar com Milton e levar o público junto com ele”, reforça a diretora.
A jam session, no caso, são os depoimentos que tentam dar conta sobre a música feita por Milton desde os anos 1960, antes mesmo de ser famoso, quando ele batucou na máquina de escrever do escritório em que trabalhava Canção do Sal, gravada por Elis Regina (1945-1982) em 1966 - a primeira grande chance profissional de Bituca.
“Em buscas de respostas, viajamos por vagões imaginários, atravessando linhas do tempo e do espaço, e conversamos com pessoas que tentam desvendar o mistério dessa voz”, diz um trecho da narração do documentário. Para ‘competir’ com a voz de Bituca, a escalada foi outra voz de peso: a de Fernanda Montenegro.
A decisão de amarrar o roteiro com texto veio justamente da estrada, de acompanhar cada show e cada depoimento que acrescentavam camadas ao personagem do filme. “(O texto) é um guia mesmo. Milton é simples, todo mundo sabe, mas é complexo”, diz Ferla.
Em um primeiro momento, a narração era da própria Flavia, contando em primeira pessoa a experiência de seguir Milton em sua despedida dos palcos. Quase um diário de viagem. Perceberam, diretora e roteirista, que a voz deveria ser em terceira pessoa. Fernanda, então, se tornou quase uma escolha natural.
“Milton e Fernanda são amigos. Ela deu a narração de presente para ele. A Fernanda se emocionou absurdamente com o texto. Mais de uma vez ela parou, a voz embargou. Fernanda entra nos sentidos do texto, que é sobre o tempo, o fim, a finitude. E a Fernanda é parte dessa geração que hoje olha o adeus aos palcos, o final do ciclo profissional”, diz a diretora.
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A fragilidade de um artista gigante
Depois da parte internacional, o documentário Milton Bituca Nascimento chega ao Brasil. Milton é jazz. Mas também é o interior do Brasil. As montanhas de Minas Gerais. Os tambores. “Vem debaixo do barro do som”, diz o mineiro João Bosco, ao lembrar uma definição do poeta Guimarães Rosa, seu conterrâneo.
As inserções de vida pessoal de Milton Nascimento são mais raras no documentário, até porque o longa fugiu do recorte biográfico. Bituca, em um momento, se lembra da mãe adotiva, o seu grande amor, Lilia. Dá um comovente depoimento, sentado em uma cama de hotel, em Los Angeles, em uma sessão de bate-papo bastante intimista, quando Flavia o deixou muito à vontade, com as câmeras distantes cinco metros dele.
“(Minha mãe) era carioca e chegou a Três Pontas (onde Milton foi criado) com um filho negro. O povo falava muito dela. Ela sofreu mais do que eu”, confessa Milton.
É nesse mesmo quarto de hotel que ele se lembra quando, ainda garoto, gritava pelas cavernas e montanhas de Minas Gerais, em busca do eco. Milton rejuvenesce com a recordação. Inevitável a lembrança da canção Bola de Meia, Bola de Gude, feita em parceria com Fernando Brant.
O eco nunca o largou. Basta ouvir suas canções. Sobre essa questão, Caetano Veloso faz uma importante observação. “Milton influenciou o ritmo cerebral das pessoas (letristas) ao redor dele”, diz.
A fragilidade de Bituca, atualmente com 82 anos, fica exposta em alguns momentos do documentário. É possível vê-lo utilizando cadeira de rodas, ou em passos curtinhos, sempre amparado. “Um homem comum, que não pode mais andar sozinho pelo mundo”, humaniza-o a narração.
“Queria mostrar o tamanho e a fragilidade. O menino e o ancião”, explica Flavia. A diretora afirma que Milton não fez qualquer proibição. “Houve momentos em que o público estava aplaudindo, comendo pipoca, e Milton passando mal nos bastidores, enjoado. Ou, com tontura, em Londres”.

Outro grande que aparece bastante fragilizado é o músico Wayne Shorter (1933-2023). Foi o saxofonista quem levou Milton para o mundo no álbum Native Dancer, de 1975. O doc mostra uma visita de Milton a Shorter. A sensibilidade da diretora e a direção de fotografia de Pedro Rocha amenizam tudo. Não há exposição gratuita.
O documentário faz, como Milton gosta, a conexão de sua música com artistas mais jovens. Zé Ibarra, que tocou e fez vocal na última turnê de Milton, se junta a Tim Bernardes e Dora Morelenbaum para cantar Anima.
Com isso, o filme tem um filho musical: o álbum ReNascimento, conduzido por Victor Pozas, responsável pela direção musical do filme. Nele, cantam nomes como Liniker, Agnes Nunes, Lucas Mamede, Os Garotin, entre outros.
Se o filme sai dos trilhos alguma vez, é quando deixa de fora do vagão nomes como Alaíde Costa, a única mulher a participar do Clube da Esquina 1, e para quem Milton produziu um disco; e Joyce Moreno, a quem Bituca conheceu em 1967, apresentado por Vinicius de Moraes. Duas amigas apartadas há tempos do convívio com Bituca.
Em uma cena comovente, o filme mostra em seu final que tudo é cíclico, sobretudo em relação à origem do canto de Bituca. A caverna e o jazz na voz de uma cantora amada por ele: a definição de sua música está mais perto do que todos supunham. Diante disso, o questionamento narrado por Fernanda Montenegro faz todo o sentido: “O que é uma despedida diante da imortalidade?”