Um terço dos brasileiros são evangélicos: um terremoto religioso com profundas consequências políticas, que Petra Costa descreve em seu documentário Apocalipse nos Trópicos, que estreou nesta quinta-feira, 29, no Festival de Veneza.
Costa foi indicada ao Oscar em 2019 com Democracia em Vertigem (2019), uma descrição vertiginosa da enorme tensão política vivida pelo Brasil com a investigação anticorrupção Lava Jato, que resultou no encarceramento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
E de certa forma, Apocalipse é uma segunda parte dessa imersão na política populista no gigante sul-americano.
“Acredito que estamos entrando em uma camada ainda mais profunda, como placas tectônicas que estavam mudando o subsolo do Brasil, sem que algumas pessoas, especialmente da classe média intelectual, tivessem consciência da mudança que a sociedade estava passando”, explicou a diretora em entrevista à AFP.
“É uma das mudanças religiosas mais rápidas da história da humanidade, além de guerras e revoluções”, afirma.
Em um país predominantemente católico desde a colonização pelos portugueses, o evangelismo representava apenas 5% no Brasil até 1974, quando o pastor protestante americano Bill Graham visitou o país, com o beneplácito da ditadura militar.
A queda da ditadura não significou o declínio do fenômeno, mas justamente o contrário.
E todos os partidos políticos, incluindo o Partido dos Trabalhadores de Lula, cortejaram essa parte do eleitorado.
Mas o evangelismo aprendeu, ao longo dos anos, a impor suas próprias orientações políticas.
Quando Petra Costa filmava Democracia em Vertigem, ela testemunhou, com surpresa, a bênção das cadeiras do Congresso por um pequeno grupo de fervorosos deputados evangélicos.
O que parecia uma excentricidade se transformou em uma “reunião política”, incentivada, entre outros, pelo popular pregador Silas Malafaia.
Em segundo plano, um deputado muito conservador e na época pouco conhecido, Jair Bolsonaro, circulava.
A câmera de Petra Costa teve grande acesso à intimidade de todos esses protagonistas, especialmente de Malafaia, que abriu as portas de sua casa para a equipe de filmagem.
E ao mesmo tempo, em uma marca distintiva de seu trabalho, Petra Costa mistura esses trechos com filmagens e fotos de sua família, de seus pais militantes contra a ditadura, ou da empresa construtora fundada por seu avô, uma das mais importantes do Brasil.
“Compartilhamos a mesma terra, mas falamos línguas diferentes”, reflete Petra Costa no documentário.
“Acho que nem Lula sabe o que fazer [...], porque uma grande parte da classe trabalhadora se tornou evangélica”, acrescenta em entrevista à AFP.
As crises econômicas, a epidemia de covid-19, impulsionaram esse movimento, cujos militantes se deslocavam por comunidades pobres para distribuir alimentos [...] e bíblias.
Era uma competição direta aos programas de assistência pública.
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“Eu não percebi a necessidade de grande parte da população, ou talvez de todos os seres humanos, de uma forma ou de outra, de uma espécie de transcendência, de uma espiritualidade, que pode ser religiosa”, admite Costa.
E ao mesmo tempo “é necessário que haja uma separação muito clara entre Igreja e Estado, que estamos cada vez mais em risco de perder”, acrescenta.
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