Tudo começou com Robert Altman, em 2002. Ou melhor, com Julian Fellowes. Indicado para diversos prêmios da Academia, Assassinato em Gosford Park valeu a Fellowes o Oscar de roteiro original. Altman sempre gostou de soltar a câmera entre diversos personagens, e dessa vez não foi diferente. É um de seus grandes filmes, como M.A.S.H., Onde os Homens São Homens e Nashville. Jean Renoir filtrado por Agatha Christie. A Regra do Jogo, a divisão de classes no castelo. O povo do andar de cima, e do andar de baixo. A caçada, o assassinato – quem matou, e por quê?
Na sequência, Fellowes criou a série Downton Abbey (os livros são publicados no Brasil pela Arqueiro), que foi ao ar entre 2010 e 15, e virou filme de Michael Engler em 2019. Nesta quinta, 28, Downton Abbey – Uma Nova Era, com a direção de Simon Curtis, chega aos cinemas e, no sábado, 30, o primeiro filme será a atração do canal Universal, às 23h. No filme anterior, a trama girava em torno da visita do rei e da rainha da Inglaterra ao reduto da família Crawley.
Seguem os ricos e a criadagem, mas agora Downton Abbey sofre outra invasão, ao virar palco de uma filmagem. Técnicos e artistas invadem o castelo, incluindo o galã do momento e a estrela que vale 1 milhão de ingressos. Para complicar, o momento é de mudança, a ponto de o filme ter o sugestivo subtítulo de Uma Nova Era. No filme dentro do filme, o som acaba de chegar provocando o que pode ser uma grave crise da indústria. A produção, originalmente silenciosa, tem de ser adaptada aos novos tempos. A estrela corre o risco de acabar seu reinado. Como em Cantando na Chuva, tem uma voz horrível e precisa ser dublada, o que fere suscetibilidades. A dubladora é ninguém menos do que Lady Marian. Outro problema surge quando a matriarca Violet Crawley herda uma villa no Sul da França.
Como, por quê? Surgem suspeitas da infidelidade de Violet com o dono da propriedade, um aristocrata francês, o que abala as estruturas familiares. Seu filho, nascido nove meses depois, teme ser ilegítimo. E, como a desgraça nunca chega sozinha, a mulher dele está doente, e pode ser grave. No final de Downton Abbey, o 1, Violet já se revelou enferma. Preste atenção, de novo, no subtítulo, e olhem o spoiler. Para que uma nova era se inicie, a outra, a velha era, tem de acabar. Mas isso só ocorre no desfecho, depois que Maggie Smith, a intérprete da condessa de Grantham, já fez todas aquelas observações mordazes sobre o universo do cinema, depois de assistir à filmagem de uma breve cena.
Maggie Smith! Duas vezes vencedora do Oscar – melhor atriz por A Primavera de Uma Solteirona, em 1969, e melhor coadjuvante por Califórnia Suíte, em 1978 –, essa grande atriz tem marcado presença em mais de seis décadas de cinema. Dramas, comédias, Dame Maggie Smith brilhou em diversos gêneros, até nos blockbusters da era Harry Potter. Tornou-se a preferida de várias gerações, sempre com alguma observação virulenta na ponta da língua venenosa, sempre perfeita como inglesa fleumática, ou excêntrica. Sua Violet é uma grande personagem. Basta comparar Downton Abbey com o recente Spencer, de Pablo Larraín, sobre o calvário da princesa Diana na família real britânica.
Há uma atração muito grande – uma curiosidade? – do público pela vida dos nobres. Hollywood tem contribuído para isso. Larraín é chileno, não tem a fascinação dos norte-americanos por reis e rainhas. Escolhe justamente a rebelde. Numa cena de Spencer, o príncipe Charles pede à mulher que seja razoável. A família real inteira vive de aparência, por que só Diana se recusa a assumir seu papel no jogo? Em Downton Abbey II, Violet admite que várias vezes se sentiu tentada por outros homens, mas sempre se manteve dentro das normas do que se exige de uma verdadeira lady. Essa tentação atinge agora a neta de Violet, Lady Mary/Michelle Dockery. Mary se sente atraída pelo diretor do filme dentro do filme.
É uma das personagens que mais evoluíram na série toda. Parecia frívola, revelou-se sábia, compassiva, a guardiã da tradição de Downton Abbey. Conseguirá resistir à tentação? Bem escrito, muito bem interpretado, o filme fascina justamente por se situar entre dois momentos, duas eras, dois mundos. O funeral, com pompa e circunstância, que encerra Downton Abbey II lembra o desfecho de Imitação da Vida, de Douglas Sirk, de 1960. É uma despedida – a toda uma concepção de mundo. Pode ser também a uma concepção de cinema. Curtis usa recursos contemporâneos – as tomadas aéreas por drones –, mas filma à moda antiga.
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