Dramaturgia em diálogo com a psicanálise

Teses de Freud sobre o inconsciente serviram de inspiração cinematográfica há muitos anos

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:
O pai da psicanálise, Sigmund Freud Foto: EDDIE WORTH/AP

Até por serem contemporâneos, era natural que cinema e psicanálise estivessem em constante diálogo. Em meados dos anos 1890, Sigmund Freud usa pela primeira vez o termo “psicanálise” para se referir à cura de transtornos mentais pela palavra. Em 1895, os irmãos Lumière promovem a primeira sessão pública de cinema no Boulevard des Capucines, em Paris.

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Nos anos 1920, o então nascente surrealismo entusiasmou-se com as teses de Freud sobre o inconsciente. Dois jovens espanhóis - Salvador Dalí e Luis Buñuel - fizerem um filme cuja ambição era tocar diretamente a dimensão inconsciente. Un Chien Andalou (Um Cão Andaluz) agitou Paris em 1928. Buñuel, desta vez sozinho (já havia brigado com Dalí), voltou à carga com o ainda mais incisivo L’âge D’Or (A Idade de Ouro), em 1930. Os dois filmes apostavam na força do desejo e na potência do absurdo na condição humana. 

Os surrealistas admiravam Freud, mas o pai da psicanálise via seus fãs com desconfiança. Para os artistas, ir ao inconsciente era uma busca pelo irracional, tido como fonte de uma verdade negada pela razão. Freud era antes de tudo um racionalista, um homem de ciência que começou pela neurologia clássica e só fundou a própria disciplina ao perceber que a medicina clássica não tinha respostas para os desafios clínicos que enfrentava. Anos mais tarde, Salvador Dalí fez um desenho famoso, a bico de pena, de um Freud que parecia sintomaticamente mal-humorado. 

O método psicanalítico, em si, desde cedo interessou aos cineastas. Segredos de uma Alma (1926), do alemão G.H. Pabst, tem por protagonista um homem com obsessão por facas e que teme ferir a mulher, a quem ama, por impulso. O médico lhe propõe um tratamento psicanalítico para descontrair os conflitos psíquicos que estariam na origem dessa compulsão. A descoberta do trauma infantil, relacionado ao abandono, o livra dos sintomas. 

Susan Kohner e Montgomery Clift em cena de 'Freud, Além da Alma' Foto: Universal International Pictures

Talvez o mais famoso dos filmes “psicanalíticos” seja Freud: Além da Alma (1962), de John Huston, uma espécie de psicobiografia do pai da psicanálise em seus primeiros tempos de descobertas. Freud é vivido por um atormentado e convincente Montgomery Clift. Sabe-se que Huston havia encomendado um roteiro ao filósofo francês Jean-Paul Sartre, que lhe entregou um calhamaço de 500 páginas, virtualmente infilmável. Foi descartado. O filme mostra Freud tentando encontrar solução para seus primeiros casos de histeria. Em especial, sua paciente inaugural, Anna O., cujo verdadeiro nome era Bertha Pappenheim.

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Tanto Pabst quanto Huston esbarram no maior lugar-comum da psicanálise. Seriam os traumas infantis os responsáveis por sintomas psíquicos da idade adulta? De fato, Freud chegou a pensar assim, mas apenas no início. Achava que os transtornos mentais de adultos estavam associados a abusos sexuais sofridos na infância. Logo, no entanto, percebeu que esses supostos abusos moravam mais no mundo de fantasia das crianças que na maldade dos adultos. Foi o pulo do gato da psicanálise - atribuir à dimensão imaginária o poder de adoecer as pessoas, prescindindo de traumas reais. O cinema costuma desconhecer esse passo adiante da psicanálise porque é mais fácil construir uma dramaturgia com base em traumas reais do que em causas imaginárias. 

Bem ou mal interpretadas, as ideias de Freud alimentam a inspiração cinematográfica há muitos anos, ainda que de forma indireta. Pode-se dizer que todo o Expressionismo alemão, de certa forma, nasce embebido em questões psicanalíticas, de medos e temores inconscientes e que se expressam em formas distorcidas, em especial nos sonhos. 

Verdade que o Expressionismo capta a angústia com a ascensão do nazismo e mescla esse medo político aos conflitos mentais e existenciais dos que viviam aquele fim de civilização. Basta assistir a obras-primas como O Gabinete do Doutor Caligari (1920) ou M: o Vampiro de Düsseldorf (1931) para constatar essa dupla origem dos filmes. 

O fato é que as ideias de Freud tornaram-se tão correntes e integradas à cultura que passaram a influenciar mesmo os que não o haviam lido ou não lhe davam tanta importância cultural. Ingmar Bergman costumava negar influências psicanalíticas diretas em sua obra, mas elas são perceptíveis nos personagens perturbados com crises de angústia e identidade como em Face a Face (1976) ou Persona (1966). 

É preciso lembrar também que o mestre Luis Buñuel, que começara no cinema influenciado por uma psicanálise meio selvagem, voltaria a esse universo em uma obra da sua fase intermediária como A Bela da Tarde (1967), com Catherine Deneuve como a burguesa que se prostitui sem qualquer motivo aparente. Tornaria ainda uma vez ao redil psicanalítico em sua fase tardia, com um estupendo Esse Obscuro Objeto do Desejo (1977). Este é um estudo radical e um tanto humorístico sobre a incapacidade de realização sexual de um senhor maduro (Fernando Rey) atormentado por uma mulher tanto sedutora quanto esquiva (interpretada por duas atrizes, Carole Bouquet e Angela Molina). 

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As rivalidades de Freud​ 

Jung (Fassbender) e Freud (Viggo) em cena de 'Um Método Perigoso' Foto: Imagem Filmes

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As rivalidades de Freud também foram tratados no cinema, em especial em Um Método Perigoso (2011), de David Cronenberg. A história mostra a ciranda entre Freud, seu discípulo Carl Gustav Jung, e uma paciente russa, Sabine Spielrein. Originalmente cliente de Jung, Sabine também entra na esfera de influência de Freud e vira troféu de um embate - tanto teórico como sexual - entre os dois homens. Livre de ambos, Sabine, que é uma personagem real, tornou-se psicanalista. Foi fuzilada pelos nazistas quando estes invadiram a União Soviética

Jung era o discípulo favorito de Freud. Romperam porque Jung tinha ideias um tanto místicas e Freud era um materialista empedernido. Temia que, nas mãos de Jung, a psicanálise flertasse com a superstição e se convertesse numa espécie de religião laica. Tinha lá suas razões, mas as teorias de Jung também foram muito sedutoras para os artistas. Federico Fellini o tinha como leitura de cabeceira e basta assistir a filmes como 81/2 (1963) ou Julieta dos Espíritos (1965) para compreender como o alimento junguiano foi nutritivo para o genial cineasta italiano. 

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