Nos meses seguintes ao seu segundo transplante de medula óssea, o algoritmo do TikTok de Suleika Jaouad começou a exibir vídeos de dragões-barbudos trocando de pele. Para uma escritora cuja obra lida com ambiguidades, essa metáfora era mais apropriada do que ela gostaria.
Jaouad cita Joan Didion e Emily Dickinson numa conversa casual. É autora de Memórias de uma vida interrompida: O que a perspectiva da morte me ensinou sobre a vida (Sextante, 2022), best-seller que documenta seu primeiro transplante de medula óssea e o que veio depois. Diagnosticada com leucemia mieloide aguda em 2011, Jaouad registrou a experiência em tempo real para uma coluna no New York Times.
“Por que essas coisas me atraem?” Jaouad, agora com 35 anos, ficou surpresa com os vídeos de répteis. Ela fez a pergunta no sofá de sua casa no Brooklyn, com o almoço servido sobre a mesinha à sua frente. Seu cachorro, River, acomodado perto dos pés dela, estava de olho no babaganoush.
Mais do que sonetos antigos e fragmentos de sabedoria budista, eram os dragões-barbudos trocando de pele que pareciam contar a verdade sobre o que Jaouad chamou de “experiência de renovação forçada”. Ela também tinha mudado de pele – duas vezes, até agora. E, assim como os lagartos, ela não teve escolha senão abraçar a vulnerabilidade. “Eu estava tão nua que me sentia uma larva”, disse Jaouad.
Este mês, Jaouad revisitará o período doloroso da volta do câncer e do segundo transplante quando o documentário American Symphony estrear na Netflix, em colaboração com a Higher Ground, produtora de Barack e Michelle Obama. O filme acompanha Jaouad e seu marido, o músico Jon Batiste, enquanto o casal enfrenta o que Jaouad chamou de “vida de contrastes”. Jaouad e Batiste são produtores executivos.
Quão gritantes são os contrastes? Em novembro de 2021, Jaouad soube que seu câncer tinha retornado. Naquela mesma semana, Batiste recebeu 11 indicações ao Grammy – o artista mais indicado. Na noite anterior a Jaouad dar entrada no hospital para o transplante, os dois – que se conheceram quando eram estudantes de ensino médio e se reencontraram tempos depois – se casaram em casa e trocaram anéis de fita improvisados.
Enquanto isso, Batiste continuou trabalhando como líder da banda do The Late Show with Stephen Colbert e compondo uma apresentação no Carnegie Hall em Nova York (também chamada de American Symphony) que destilaria toda a história americana em som. No seu quarto esterilizado, Jaouad começou a pintar e revestir as paredes com aquarelas vibrantes – e às vezes arrepiantes.
Não era para ter acontecido nada disso
Tal como antes do primeiro diagnóstico, Jaouad vinha enfrentando meses de uma fadiga persistente quando foi ao médico para fazer exames.
Já havia se passado mais de uma década desde o primeiro transplante de medula óssea. Sua equipe médica estava tão convencida da cura que a biópsia que ela insistiu para fazer foi considerada uma espécie de favor. Minutos antes do procedimento, uma enfermeira disse que ela não precisava fazer nada daquilo. “Fiquei envergonhada”, disse Jaouad.
“Me senti uma hipocondríaca histérica e melodramática”
Ela quase desistiu, mas a escritora Elizabeth Gilbert – amiga e mentora – estava junto na consulta. Ela não queria que Gilbert sentisse que tinha perdido tempo.
Os médicos puncionaram a coluna de Jaouad para extrair uma amostra da medula. Gilbert ficou de guarda, dizendo que aquela provação era “terrível demais”. A recaída “simplesmente não deveria ter acontecido”, escreveu ela por e-mail. “Não havia precedente para uma coisa dessas, e é por isso que ninguém estava procurando nada”.
“Eu estava certa ao insistir na biópsia”, disse Jaouad. “Gostaria de não estar, claro”.
O cineasta Matthew Heineman já havia começado a produção do que viria a ser American Symphony quando os resultados de Jaouad chegaram. Heineman, que dirigiu Cartel Land e Uma Guerra Pessoal, estava interessado em acompanhar Batiste enquanto ele concebia o espetáculo do Carnegie Hall. A recidiva de Jaouad exigiu – como disse Heineman – uma “mudança de rumo”.
Jaouad não queria funcionar como uma reviravolta na história
“Nunca quis ser transformada na ‘menina doente’”, disse Jaouad. “Falei para o Matt, abertamente: ‘Não quero ser o contraponto dramático ao sucesso meteórico do Jon’”. Heineman garantiu que também não estava interessado nos clichês de histórias sobre doença.
Em American Symphony ninguém sente um caroço estranho. Jaouad não tem um telefonema dramático com seu oncologista. Os espectadores descobrem que ela tem câncer no meio de uma feroz luta de bolas de neve na qual Jaouad – atingida e fingindo indignação – protesta: Não vale bater na menina com leucemia.
Jaouad encarou o projeto com a mesma hesitação que vivera com Memórias de uma vida interrompida. Ela relembrou um encontro com a escritora Cheryl Strayed pouco depois do primeiro transplante. Ela disse a Strayed que queria escrever um livro, mas não sobre doença. Strayed disse que certa vez estava determinada a evitar escrever sobre a morte de sua mãe. Pouco depois, entregou o manuscrito de Livre: A jornada de uma mulher em busca do recomeço.
“É um livro sobre a caminhada, mas é muito mais sobre a morte da mãe”, disse Jaouad com um sorriso.
O livro de Jaouad e, até certo ponto, The Isolation Journals, famosa newsletter que ela lançou no início da pandemia, exploram como reentrar no mundo depois da devastação. American Symphony continua na mesma linha: como seguir em frente quando não há um “depois” muito claro.
“Ela consegue transformar a escuridão, alquimizar a escuridão, transmutar a escuridão em luz”, disse Batiste em entrevista por telefone. (Ele ligou horas depois de mais indicações ao Grammy. Este ano, ele ganhou seis, inclusive um por Butterfly, música que toca no trailer de American Symphony e que ele escreveu para Jaouad). “Ela consegue olhar para o que está acontecendo e ver não apenas como ela pode encontrar Deus e encontrar a cura, mas também trazer essa visão para centenas de milhares e milhões de outras pessoas por aí que ela nunca conheceu”.
Otimismo necessário
Depois da estreia do filme no Festival de Cinema de Telluride, Jaouad lembrou que alguém na plateia se aproximou e disse como estava aliviada: “Você ainda está aqui”.
“Quando se trata de histórias de doenças, nós as contamos do ponto de vista de quem sobreviveu”, disse Jaouad. Nesse sentido, American Symphony, que não apresenta nenhuma atualização sobre a saúde de Jaouad, é um corretivo. “Não estava claro se eu sobreviveria ao período de filmagem”, disse ela. Os créditos rolam, mas não há um final perfeito para Jaouad e Batiste.
“Ninguém sabe se vai existir no futuro, mas tenho um medo maior de não existir no futuro”,
disse Jaouad.
Em Memórias de uma vida interrompida, Jaouad escreve sobre suas conversas com um homem chamado Quintin Jones. Jones, que se apresenta a ela como “Lil GQ”, leu suas colunas enquanto estava no corredor da morte. Ele escrevia a partir da identificação: de uma pessoa presa para outra.
Depois do transplante, ela o visitou na cadeia. Mas, na semana em que o livro foi lançado, ele soube da data de execução. Jaouad ficou arrasada. Ela se lançou no movimento para que sua sentença de morte fosse convertida em prisão perpétua. Não deu certo.
Na manhã da execução, Jones teve direito a quatro horas de telefonemas. Ele as usou com Batiste e Jaouad. “Foi inacreditável, porque falávamos com verbos no futuro, sabendo que o futuro não iria acontecer”, disse Jaouad. “Ele falou sobre vir nos visitar, ficar conversando com a gente no jardim. Nós fizemos a escolha de viver naquele espaço”. Ela tentou explicar a suspensão. Sua decisão consciente de estar fora do tempo.
Nos últimos meses, Jaouad está se forçando a fazer planos. Ela vê como um ato de “otimismo necessário” o fato de ter se comprometido a escrever mais dois livros. Um deles será uma obra de pintura e prosa que Jaouad intitulou Treino de Afogamento. O segundo será sobre a escrita de diários, incorporando exercícios de escrita. Ela vai exibir suas obras no centro de arte ArtYard no ano que vem.
Semanas atrás, Jaouad viajou para Seattle e estava caminhando ao ar livre quando de repente caiu uma chuva torrencial. Alguém correu para lhe oferecer um guarda-chuva. “Eu fiquei, tipo, ‘Não, não precisa, está tudo bem’”, lembrou Jaouad. Ela queria sentir a chuva no rosto.
De volta a Nova York, ela se permitiu fantasiar. Não sobre prêmios ou tapetes vermelhos, mas sobre alguma tempestade nada especial daqui a uma década. Como seria incrível não se sentir nova, disse ela. “Se eu estiver por aqui, vou querer o guarda-chuva”.
Este artigo foi originalmente publicado no New York Times.
/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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