PARK CITY, UTAH - Muitos dos filmes do Festival de Cinema de Sundance rompem a “barreira” da produção independente para se tornarem sérios concorrentes da temporada de prêmios do ano seguinte (os exemplos são muitos, de Hannah e Suas Irmãs, de Woody Allen, a Boyhood, de Richard Linklater, e Corra!, de Jordan Peele). Não será surpresa se em 2021 Shirley, de Josephine Decker, com Elisabeth Moss e Michael Stuhlbarg, arrancar indicações aos principais prêmios da indústria, especialmente pelas atuações dos dois atores.
O filme acompanhada a chegada de um jovem casal (Odessa Young vive Rose, a verdadeira protagonista da história, e Logan Lerman, seu marido Fred) à casa da escritora Shirley Jackson (Moss) e de seu marido, o professor universitário Stanley Hyman (interpretado com vigor à Allen Ginsberg por Stuhlbarg), na metade dos anos 1950.
Shirley Jackson de fato existiu: seus romances se tornaram clássicos cult do horror americano, embora a definição não a agradasse. Os livros eram na verdade explorações psicológicas e estudos de personagens perturbados mentalmente: não espanta portanto que o retrato que a diretora Josephine Decker extraia da situação faça a própria escritora se parecer com eles. “Eu sou uma bruxa, sabia?”, diz Shirley, vivida por uma Elisabeth Moss (a estrela de The Handmaid’s Tale e Mad Men) agorafóbica, de olhos selvagens e cabelos desgrenhados, mas com o tipo de comicidade dramática que apenas grandes atrizes conseguem alcançar.
Mesmo assim, o filme – na competição principal de Sundance – não é uma “biopic”. Ele se concentra nos meses que o casal mais jovem (fictício) passou na casa no estado do Vermont onde Shirley e Stanley viviam. “Eu não sabia nada sobre Shirley Jackson antes de entrar no filme”, explicou Stuhlbarg na sessão de perguntas e respostas da primeira exibição do global do filme, no fim de semana. “Mas o próximo passo foi entender que ele é baseado numa ficção (o romance Shirley, de Susan Scarf Merrell, de 2014) e que nós estávamos indo em outra direção mesmo dali, então o conteúdo todo foi três vezes ‘removido’ da inspiração original.”
Moss conta que leu muitos dos escritos de Jackson para se preparar para o papel. “Ela tem muito de si mesma no seu trabalho, e explorar sua relação com Stanley também foi muito importante”, disse – no filme, fica claro que o casal tem um arranjo, e que Stanley tem affairs fora do casamento – mas nem sempre o combinado sai barato.
Com produção executiva de Martin Scorsese, o filme tem uma modernidade latente ao povoar as duas personagens principais com sentimentos complexos, contraditórios, às vezes até inconsistentes. Rose é uma jovem intelectual que cede às pressões do marido para ficar em casa e cuidar do filho recém-nascido, mas sente e expressa desejos (sexuais, também) – na cena inicial, ela está no trem lendo o conto mais famoso de Jackson, The Lottery, e logo em seguida provoca o marido para uma relação sexual no banheiro do vagão. Um envolvimento afetivo posterior com Shirley se torna não apenas o fio condutor do filme, mas o que lhe dá brilho, e as duas mulheres sempre estão um passo a frente dos maridos. Ao mesmo tempo, Shirley se dedica ao seu próximo romance – tudo isso num clima de Quem Tem Medo de Virginia Woolf?
Para Moss, as relações entre todos os personagens principais são complexas e interessantes (não se forma exatamente um ‘quadrado amoroso’, sem entregar muito do trama), mas são os sentimentos de Rose em relação a Shirley que se destacam. “É um amor afetivo, sexual, mas também tem ciúmes, uma dúvida sobre o que é real e o que não é real, um admiração. É uma exploração de quase todas as formas de uma relacionamento entre duas mulheres.” Muito da estrutura do filme surge do roteiro consistente de Sarah Gubbins, em seu primeiro trabalho para o cinema. “Ela conseguiu construir essa dinâmica entre as duas personagens, de como alguém se transforma numa mulher, e isso é o coração do filme”, disse a diretora.
“Um grande desafio”, explicou Decker, “foi filmar os diálogos longos, então também fizemos um processo de atuação parecido ao do teatro, fazendo com que os atores realmente entrassem nos personagens, acho que eles até acharam meio chato.” O resultado, porém, fica bem longe disso.
#MeToo
O tema de mulheres lutando contra imposições sociais e políticas é o de vários outros filmes de Sundance, com diferentes abordagens. Bad Hair, o segundo longa do diretor de Cara Gente Branca, Justin Simien, é um terror criativo e de humor sarcástico que acompanha uma jovem produtora numa rede de TV de cultura negra americana que sofre pressões de todos os lados para mudar seu cabelo – quando ela o faz, porém, passa a viver em um mito folclórico em que os cabelos assumem vontades próprias – e tendências assassinas, no caso.
Um documentário sobre o magnata do hip hop Russell Simmons (acusado de agressões sexuais) está cercado de polêmica depois que Oprah Winfrey retirou seu nome da produção.
Mas o filme que se destaca nessa leva é The Assistant, escrito, dirigido, produzido e montado pela cineasta australiana Kitty Green. É sintomático que ele estreie em Sundance, onde Harvey Weinstein, cujo julgamento em Nova York por crimes sexuais está andamento, construiu parte da sua fama.
O filme segue um dia na vida de Jane (Julia Garner, de Ozark), uma assistente com educação formal que vai trabalhar no escritório de Nova York de uma grande produtora/distribuidora de cinema. Ela é a assistente junior de um chefe, que mal aparece na tela mas possui uma presença fantasmagórica sobre todo o escritório. A semelhança com o caso Weinstein é flagrante mas o filme não cai na armadilha de ser à clef. Os sinais estão lá: todo mundo sabe o que acontece. A dúvida é: quem vai fazer alguma coisa?
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