A imagem de Elvis Presley que ficou para a maioria é a do artista com grandes costeletas, metido em macacões com capa, um tanto acima do peso. Aquele Elvis que a maior parte dos sósias gosta de imitar. Mas ele foi múltiplo. Elvis, que é dirigido pelo australiano Baz Luhrmann e estreia no Brasil na quinta-feira, 14, depois de uma boa recepção no Festival de Cannes e elogios da viúva do artista, Priscilla Presley, tenta dar conta de suas várias faces, com música, figurinos extravagantes e energia. “Meus filmes são especificamente elaborados para que o espectador participe”, disse Luhrmann em entrevista com a participação do Estadão, durante o Festival de Cannes.
O filme cobre sua trajetória difícil, desde a infância pobre à morte precoce, aos 42 anos, e a relação complicada com o empresário, o “Coronel” Tom Parker (Tom Hanks). Também mostra o cantor branco que deve tudo aos grandes músicos negros do sul dos Estados Unidos, criando uma ponte então inexistente em uma época de segregação racial, e o artista que gerou histeria pelos movimentos ousados de seus quadris, em um tempo pré-revolução sexual.
Para isso, Luhrmann precisava encontrar o ator ideal. Ansel Elgort, Miles Teller e até Harry Styles estavam na disputa, mas o papel terminou com Austin Butler. O ator de 30 anos atua desde a adolescência, tendo feito papéis em séries teen como Hannah Montana e iCarly, mas começou a ter destaque mais recentemente, atuando ao lado de Denzel Washington na peça The Iceman Cometh e um pequeno papel em Era uma Vez... em Hollywood, de Tarantino.
Butler ganhou o papel depois de enviar um vídeo em que cantava Unchained Melody. O ator chorava, pois tinha sonhado com sua mãe – como Elvis, ele também perdeu a mãe no início dos seus 20 anos. “Acho que Austin estava destinado a interpretar o Elvis”, disse Luhrmann. Priscilla, porém, tinha dúvidas se aquele garoto podia fazer o papel. “Depois de ver, ela me disse que ele capturou cada movimento, sim, mas principalmente a alma e a humanidade de seu marido.”
Imitação
Essa era uma preocupação de Butler. “Eu não queria fazer algo externo, uma imitação”, disse o ator em mesa-redonda com a participação do Estadão em um hotel em Cannes. Por dois anos, ficou obcecado na preparação. Ele canta todos os números quando Elvis é mais jovem, e sua voz é mesclada à do cantor em sua fase mais velha. As performances são impressionantes. “Não vi minha família nem meus amigos nesse tempo todo. Não conseguia manter um relacionamento com ninguém da minha vida”, disse ele. “Mas não vi isso como sacrifício, porque veio do meu amor pelo papel e pelo filme.”
Em certos momentos, teve dúvidas se seria capaz, por não se achar parecido o suficiente com Elvis Presley. “Eu tinha essa expectativa irreal de que ficaria idêntico a ele”, disse Butler. “Mas aos poucos me libertei disso e procurei encontrar a sua humanidade, porque esse era o objetivo: despir o ícone e encontrar o homem. Joguei todas as minhas experiências de vida, meus lutos, minha dor, minha alegria. Coloquei minha alma para me conectar com sua vida interior.” Deu certo: já se fala em uma possível indicação ao Oscar.
Seu mergulho em Elvis foi tamanho que ele teve uma crise existencial quando terminou. Foi “bizarro” se readaptar à própria vida. Mas, logo em seguida, foi interpretar um soldado da Segunda Guerra na série Masters of Air, da produtora de Tom Hanks, que segue os passos de Band of Brothers e The Pacific. Em breve, também estará na segunda parte de Duna. “É o momento mais mágico da minha vida”, disse Butler. “Trabalho desde os 12 anos. Muitas vezes, não tinha dinheiro para o combustível. E eu sei que muitos atores talentosos não têm a oportunidade que estou tendo. Eu não consigo nem expressar como estou grato.” O menino californiano tímido e solitário – como Elvis Presley era na infância, aliás – está pronto para o estrelato.
'Não haveria Elvis sem a música e a cultura negras'
Nos quase 70 anos desde que despontou para o estrelato, Elvis Presley nunca perdeu seu apelo. Seus grandes hits continuam ecoando por aí, em comerciais e trilhas sonoras de filmes. Nesse período, houve discussões também sobre sua relação complexa com a música negra – o cantor regravou várias faixas gravadas antes e compostas por artistas negros, que nunca tiveram a chance de alcançar o mesmo sucesso. Elvis, o filme, não deixa isso para trás. “Não haveria Elvis Presley sem a música e a cultura negras”, disse o ator Austin Butler, que interpreta o cantor, em entrevista com a participação do Estadão, em Cannes, onde o filme foi exibido fora de competição.
Butler, que tem 30 anos de idade, confessou, que essa foi uma revelação que fazer o filme trouxe. “Eu sabia que ele era de Tupelo, Mississippi, mas não que tinha crescido em uma das poucas casas destinadas a famílias brancas em uma comunidade negra”, contou. Elvis Presley nasceu em 8 de janeiro de 1935 na pequena cidade dos Estados Unidos. Era uma época em que as leis de segregação racial separavam brancos e negros. Mas, por viver em um bairro predominantemente negro, o menino tinha amigos negros e observava os cultos das igrejas negras. “Fui fazer pesquisa em Tupelo e Memphis e ouvi da boca de Sam Bell como era a infância dele e Elvis no sul”, disse Luhrmann sobre o amigo de infância do artista. O cineasta também contou com a consultoria do historiador Nelson George, especialista em música afro-americana. “Também descobri que Elvis cantava gospel pela manhã. Acho que era seu refúgio, seu lugar de segurança”, disse Luhrmann.
Quando Elvis tinha 13 anos, a família mudou-se para Memphis, no Tennessee. Ali, sua diversão era frequentar a rua Beale, onde ficavam os clubes de blues e lojas que moldaram seu jeito de se vestir, menos comportado do que o dos artistas brancos de então. No início dos anos 1950, Sam Phillips, da Sun Records, queria levar a música negra para o público branco. Elvis Presley foi a pessoa perfeita para fazer essa ponte, já que para os artistas negros isso era impossível.
Blues
Elvis misturou o country e o gospel branco com o blues, o gospel negro e o rock. O filme mostra como a música e a cultura negras influenciaram seu gosto musical e até seu jeito de dançar. Aparecem no longa artistas negros como Big Mama Thornton (Shonka Dukureh), que cantou a versão original de Hound Dog, Little Richard (Alton Mason), Sister Rosetta Tharpe (Yola), que usou a guitarra elétrica de maneira revolucionária, Arthur Crudup (Gary Clark Jr.), que gravou That’s All Right, e B.B. King (Kelvin Harrison Jr.), que foi amigo de Elvis.
Em um diálogo, Elvis contou que quase quiseram prendê-lo por dançar como dançava. E King responde: “Bem, eu poderia ser preso apenas por andar pela rua”. O filme também tenta mostrar que Elvis recusava o rótulo de ‘rei do rock’, dizendo que na verdade, ele seria de Fats Domino. Há controvérsias, mas, hoje, poucos duvidam que os ‘reis do rock’ foram todos negros, como Chuck Berry e Little Richard. Elvis certamente se beneficiou de ser branco em um momento em que os artistas negros não conseguiam ter o mesmo espaço. Big Mama Thornton reclamou a vida toda, com razão, de não ter feito muito dinheiro com Hound Dog. Ao mesmo tempo, ele abriu caminhos para que a música desses artistas fosse ouvida, algo que Little Richard reconhecia. Indiscutível, porém, é a paixão genuína de Elvis Presley pela música e cultura negras.
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