CANNES - É estimulante conversar com Steven Spielberg depois de entrevistar seus atores – Rebecca Hall, Mark Rylance, Penelope Wilton, Jemaine Clement. Todos ressaltam características que podem parecer conflitantes – Steven é certamente um homem com uma visão, que sabe como será seu filme e a maneira de atingir o objetivo. Mas, no processo, ele está longe de ser ditatorial. Gosta de atores – “Gosta de gente”, diz Penelope, que, antes de fazer a rainha de O Bom Gigante Amigo, conquistou uma vasta audiência internacional com a série Downton Abbey. Spielberg veio ao Festival de Cannes no fim de semana para apresentar seu novo longa, que estreia no final de junho no Brasil. O Bom Gigante Amigo/The BFG, ou The Big Friendly Giant, baseia-se no livro de Roald Dahl, sobre uma garota órfã que arranja esse amigo gigante e descobre com ele que sonhos podem se realizar.
Seria intimidante entrevistar Spielberg – se acima da lenda em que ele se converteu não fosse tão cinéfilo. Alfred Hitchcock dizia que filmar é passar o roteiro pela câmera. Spielberg concorda 100%. “Antigamente, na época de E.T., a gente podia ter uma visão, mas era mais difícil concretizá-la. Digamos que o analógico nos permitia realizar 25% de nossos sonhos na tela e hoje, com o digital, não existem mais limites para a imaginação.” Diante da obra eclética desse grande diretor, o espectador pode ficar com a impressão de que existem dois Spielberg. O diretor de fantasias infantojuvenis e o outro, que faz dramas para adultos. Nos filmes do primeiro, sonhos, eventualmente, senão quase sempre, viram realidade. Nos do segundo, viram pesadelos. “Absolutly”, com certeza, ele concorda. “A psicanálise nos ensina que a infância é uma fase definidora de nossas vidas, mas, adultos, parece que temos vergonha de admitir que podemos permanecer crianças no coração e na mente. Como cineasta, descobri que materializar o sonho é muito estimulante.”
Por isso mesmo, Spielberg diz que não tem tempo para sonhar, dormindo. “Prefiro sonhar acordado e colocar na tela.” Quanto aos pesadelos da idade adulta... “Tenho feito filmes sobre a guerra, o Holocausto, a escravidão (O Resgate do Soldado Ryan, A Lista de Schindler e Amistad). Posso ser um sonhador utópico. Mas me impressiona até hoje que o homem prefira usar o desenvolvimento tecnológico para dominar e até destruir seu semelhante. Prefiro usar para tentar construir um mundo melhor. Esse festival (Cannes), que mostra filmes de todo o mundo, de todos os tamanhos e formatos, é a prova de que a democracia pode e deve nos tornar iguais. Esse, sim, é o grande sonho. Não creio que a democracia tenha conseguido, na maioria dos países, erradicar a desigualdade social. É algo por que devemos continuar lutando.”
Estar frente a frente com o grande homem, olhando no olho, fornece a chance de esclarecer uma dúvida. Aqui mesmo no Estado, o repórter escreveu diversas vezes que O Terminal, Guerra dos Mundos e Munique formam uma trilogia informal de Spielberg sobre o 11 de Setembro. Isso é consciente ou está nos olhos de quem vê? “No caso de Guerra dos Mundos, sim, é totalmente consciente. Fiz o filme movido pelo sentimento profundo que me provocaram as imagens do ataque às Torres Gêmeas. O Terminal, não. Baseia-se numa história real, que ocorreu na França muito antes de 2001. E Munique, por que você acha que tem a ver com o 11 de Setembro?”
Vamos por etapas – O Terminal pode se basear numa história anterior, mas o sentimento de xenofobia do personagem de Stanley Tucci tem a ver com a paranoia que a presidência de George W. Bush explorou. E, em Munique, é fundamental a frase de Golda Meir, quando ela diz que a caça ao terrorismo pode nos levar a perder a alma.
“Na verdade, não é bem isso que ela diz, embora seja o espírito”, corrige Spielberg. “O que ela diz é que não devemos nos arriscar a perder nossos valores. Sem eles, somos nada. E entendo o que você está querendo dizer sobre O Terminal. Fiz o filme influenciado por um sentimento muito forte que percebia na América, na época. Quando Bush fez sua guerra contra Saddam (Hussein), não foi para consolidar a democracia, mas para terminar o serviço iniciado por seu pai (na primeira guerra do Iraque).”
A pergunta que não quer calar – Tom Cruise, que entrega a filha à mãe, mas não entra na casa no fim de Guerra dos Mundos, é uma homenagem a John Ford e a John Wayne, quando a porta se fecha com Ethan do lado de fora, no desfecho de Rastros de Ódio? “É a primeira vez que me perguntam isso. Se tivesse colocado a câmera dentro da casa e fechado a porta, teria sido uma homenagem consciente. Mas fico lisonjeado que você tenha feito essa associação. Rastros de Ódio é um dos grandes filmes do cinema, e John Ford, um dos grandes diretores.”
OK, a associação pode estar na mente do repórter, mas, em Cavalo da Guerra, o espírito de Ford está presente em todo o filme, não? “Aí, sim. E também em Lincoln. O cinema de Ford tem uma ligação muito forte com a terra, seja Monument Valley nos westerns ou a Irlanda idealizada de Depois do Vendaval. Todos os meus filmes tratam de jornadas, da volta para casa, mas o tema é visceral em Cavalo da Guerra.” O repórter dá uma de tiete – diz que é um de seus Spielberg preferidos. “Muito obrigado, mas a verdade é que é um dos meus (preferidos) também.”
De volta a O Bom Gigante Amigo, o filme assinala o retorno de Spielberg a Cannes quase 35 anos depois de E.T., cujo roteiro também foi escrito por Melissa Mathison (e ela morreu em novembro passado). Rebecca Hall contou que Melissa esteve presente todo o tempo no set. Isso é comum nos filmes de Spielberg? “Por mim, seria. Embora concorde com Hitchcock (filmar é passar o filme pela câmera), gostaria de ter os roteiristas comigo para eventuais mudanças que se tornem necessárias. Por mais que a gente prepare, atores e técnicos são seres vivos, têm ideias e muitas vezes propõem coisas que nos escaparam na preparação. O problema é que os roteiristas, em geral, não estão disponíveis. Já embarcaram em outros projetos. Melissa, não. Além de grande amiga, ela abraçava um filme de cada vez e se dedicava inteiramente. Trabalhamos muito em O Bom Gigante Amigo para expressar na tela o tema dos sonhos, que está no livro de Roald (Dahl).”
O filme marca a segunda colaboração consecutiva do diretor com Mark Rylance, que ganhou o Oscar de coadjuvante por Ponte dos Espiões. Os dois vão fazer mais dois filmes juntos, e um deles promete ser mais um daqueles (grandes) Spielberg adultos – The Kidnapping of Edgardo Mortara, sobre um garoto judeu italiano do século 19 forçado a se cristianizar e cujos pais foram à Justiça contra o próprio Vaticano. Spielberg está sempre professando seu credo humanista – uma vida vale todas as vidas. “Na verdade, não sou eu. Está no Talmud.” De ascendência judaica, ele é religioso? É a única pergunta que Spielberg não responde. “Desculpe, mas é um assunto muito íntimo”, justifica-se.
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