Em Cannes, uma conversa com Karim Aïnouz: ‘Cara, estou na disputa pela Palma de Ouro!’

‘Firebrand’, exibido na mostra competitiva de Cannes, é um thriller histórico com Alicia Vikander e Jude Law sobre a pequenez das grandes figuras

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Atualização:

Karim Aïnouz tinha 34 anos quando veio a Cannes pela primeira vez, participando da seleção oficial. Madame Satã, sua biografia do notório malandro gay que reinou na Lapa, no Rio, enfrentando os inimigos na capoeira e na navalha, integrou a mostra Un Certain Regard.

Madame Satã ganhou muitos prêmios internacionais. Deu projeção, no Brasil e no exterior, para Lázaro Ramos, que depois teve a carreira que todo mundo sabe. Ator, diretor, escritor, uma figura visceral no teatro, no cinema e na TV.

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Depois disso, Karim veio mais três vezes a Cannes. Com Abismo Prateado, inspirado por canções de Chico Buarque e oferecendo um belo papel a Alessandra Negrini, participou da então Quinzena dos Realizadores, hoje Quinzena dos Cineastas, em 2011.

Oito anos mais tarde, de volta à mostra Un Certain Regard, venceu-a com A Vida Invisível, Carol Duarte, Júlia Stockler e a grande Fernanda Montenegro. Em 2021, seu doc O Marinheiro das Montanhas passou numa exibição especial.

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O cineasta encontra-se agora com a reportagem do Estadão para falar sobre seu quinto filme em Cannes. O encontro ocorre no lobby do Hotel Carlton, em plena Croisette, que abriga as ‘majors’ norte-americanas e uma parte significativa dos convidados internacionais. Em frente ao hotel, um telão exibe em looping o trailer do novo Indiana Jones, O Chamado do Destino, que teve direito a sessão especial, com homenagem a Harrison Ford, na quinta-feira, 18.

‘Cara, estou na disputa pela Palma de Ouro!’

O novo filme de Karim em Cannes é carregado de significação para ele. Firebrand Le Jeu de la Reine, em francês – é seu primeiro filme na competição, e o primeiro em língua inglesa. Karim veio diretamente de Fortaleza, onde passou alguns dias escolhendo locações para o próximo filme – sobre o qual não quer falar. Mas admite – “Quando vim aqui com o Madame Satã, tudo era muito novo para mim. Aos 57 anos, tenho mais consciência do meu ofício, mas, acredite, a emoção é muito intensa. Cara, estou na disputa pela Palma de Ouro!”

Tão logo foi anunciada a seleção, o primeiro e-mail de felicitação que Karim recebeu veio de Todd Haynes, de quem foi assistente – de som e montagem – no começo de sua carreira. A nota curiosa é que o norte-americano Haynes também foi selecionado na competição por May December, que traz Natalie Portman como a atriz que interpreta Julianne Moore num filme dentro do filme.

Firebrand tem uma característica importante – é um filme de época, passa-se na Inglaterra do século 16, contando a história da sexta esposa do Rei Henrique VIII, a única que sobreviveu ao marido, e no contexto de uma fase tumultuada da história inglesa, quando havia disputas acirradas na corte por poder, e religião.

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Catherine/Catarina Parr deveria ser interpretada por Michelle Williams, mas quem acabou ficando com o papel foi Alicia Vikander. Jude Law faz o rei. É o segundo filme, após Jeanne Du Barry, de Maïwenn, que abriu o festival na terça, 16, a abordar intrigas palacianas em épocas passadas.

‘Falo bem o inglês, mas nunca tive de dirigir na língua’

Karim – “É muito diferente de A Vida Invisível, que já era um filme de época, mas lá havia extensa documentação de fotos e até filmes que eu podia utilizar para recriar o período. Agora, contando uma história que se passa há quase 500 anos, é como se eu tivesse embarcado numa aventura de ficção científica. Nunca fiz uma, mas a sensação é essa. Falo bem inglês, mas nunca tive de dirigir em língua inglesa, ainda por cima numa produção histórica. Li muito, pesquisei muito, a pintura ajudou-me bastante e eu me cerquei de gente que entende do assunto, mas no limite é a minha visão, a forma como imagino essa Inglaterra antiga.”

Karim Aïnouz durante o festival de Cannes de 2019, quando exibiu seu 'A Vida Invisível de Eurídice Gusmão' na mostra Un Certain Regard Foto: Stephane Mahe/Reuters

Imaginai! Já era o que propunha Shakespeare em seu Ricardo III. Karim imagina, mas com toda a documentação de que pode nutrir-se. Nunca fez um filme tão caro, e ao mesmo tempo sabe que, para os padrões internacionais, a produção não tem um custo exagerado. Permitiu-lhe, de qualquer maneira, dispor de tudo o que queria. Locações, figurinos, elenco, equipe técnica e artística, tudo nos conformes.

Paixões humanas

“Filmamos num castelo de verdade, cujo proprietário a produção conhecia. Desde o início eu pedia isso, para ajudar na autenticidade.” Para Karim, está sendo um sonho. O garoto da praia do Futuro, criado pela mãe – e pelas tias -, transportado para um mundo de pompa e circunstância. “Mas na verdade, não é muito diferente. Estou lidando com o material de sempre, as paixões humanas.”

Disso Karim entende, basta analisar seu currículo. A par dos seus filmes em Cannes, O Céu de Suely foi a Veneza, na Mostra Orizzonti, e Praia do Futuro concorreu ao Urso de Ouro em Berlim. Apesar do prestígio internacional acordado a A Vida Invisível, Praia do Futuro é o filme de Karim preferido pelo repórter.

Ele confessa que também tem um carinho especial pela história dos irmãos interpretados por Wagner Moura e Jesuíta Barbosa. Firebrand não foi um filme que ele escolheu fazer, mas, no fundo, acha que foi escolhido pelo próprio filme. “A Vida Invisível eu quis fazer, sobre minha mãe e minhas tias, embora fosse baseado no livro de Martha Batalha, A Vida Invisível de Eunice Gusmão. Quando minha mãe morreu, a dor foi muito funda, mas agora tenho a impressão de que ela me acompanha, está sempre presente em minha vida.”

O Marinheiro das Montanhas é sobre o pai argelino, relação complicada, porque o pai foi viver outra vida, ao abandonar sua mãe. “Não fiz o filme com essa intenção, mas estou convencido de que foi um filme de ruptura. Não sobrou nada dessa relação, digo isso sem amargura.”

Firebrand é agora sobre outra mulher forte tentando sobreviver num mundo que é hostil a ela. Todas as mulheres do cinema de Karim compartilham essa luta, até seus homens sensíveis, como os personagens de Praia do Futuro. Criaturas às vezes marginais, como Madame Satã. Na maioria das vezes, marginalizadas, mas sem perder o foco. Suely rifa o próprio corpo para tentar sua libertação. A rainha, como diz o título francês, faz seu jogo, e não joga para perder.

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Neste domingo, Karim estará no tapete vermelho de Cannes, participando da gala de Firebrand. A chamada montée des marches faz parte do cerimonial de Cannes. Depois, mais uma semana, à espera da premiação, na noite de sábado, 27.

Com ou sem Palma de Ouro, Karim saboreia sua 5.ª vez em Cannes. Depois da dificuldade de filmar no Brasil dos últimos quatro anos, uma nova etapa abre-se para ele.

Como é o filme Firebrand

Na entrevista que concedeu ao Estadão, Karim Aïnouz definiu Firebrand como um thriller histórico. A afirmação passou meio despercebida ao repórter, que ainda não havia visto o filme. Firebrand – em francês, Le Jeu de la Reine – conta a história Parr, a única das seis esposas do rei Henrique VIII a sobreviver ao marido. Da forma que Karim conta a história, Catherine/Alicia Vikander está prestes a seguir o caminho das outras – condenadas, decapitadas, uma envenenada -, mas é salva por um twist final. É mais um retrato de mulher forte no duro universo masculino, tema recorrente dos filmes de Karim.

Abandonado pelo pai, criado pela mãe e pelas tias, Karim tem feito filmes para celebrar o feminino. Logo na abertura de Firebrand, Catherine está ocupando a regência do marido, que partiu para a guerra. Arrisca-se ao visitar uma amiga de infância que prega contra o rei e a nova Igreja que ele fundou na Inglaterra, afastando-se de Roma (e do Papa). Por conta disso, ganha inimizades de todos os lados.

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O primaz da Igreja anglicana quer vê-la na fogueira. Para o espectador – cinéfilo – que acompanha a carreira, a evolução do cineasta é evidente. Karim filma cada vez melhor, e dessa vez enfrenta o desafio da língua estrangeira – o filme é falado em inglês. Praia do Futuro já era parcialmente filmado em alemão, mas era diferente. Karim tem casa na Alemanha, mais exatamente, em Berlim.

A história passa-se num castelo de Derbyshire, distante de Londres. A peste está ceifando vidas. O próprio rei está com uma ferida purulenta na perna. Karim não é o primeiro a filmar intrigas palacianas na Inglaterra, mas com seu olhar estrangeiro – brasileiro – não cede à pompa, nem à circunstância. No melhor sentido, é um olhar de plebeu sobre a realeza, que se comporta vulgarmente.

Está tudo no filme – a rebeldia de Catherine e a força da jovem Elizabeth I, que sucederá ao pai e será a rainha que todo mundo sabe. Alicia e Jude Law, como Henrique, são excepcionais nos papéis. O filme parece classicão, não fosse a vontade de mostrar a pequenez das grandes figuras. É o que poderá ajudar Firebrand na premiação. Vale lembrar que o presidente do júri – o sueco Ruben Ostlund – é um provocador.

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