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Em ‘Capitu e o capítulo’, Mariana Ximenes encarna os olhos de cigana dissimulada de ‘Dom Casmurro’

Filme de Julio Bressane com Mariana Ximenes e Vladimir Brichta estreia nesta quinta-feira, 27 de julho, e oferece adaptação não-convencional do romance clássico de Machado de Assis

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio

A personagem feminina de Dom Casmurro, talvez o mais célebre romance de Machado de Assis, entrou para a história da cultura brasileira por seus olhos. “Olhos de ressaca. Olhos oblíquos, de cigana dissimulada”, define Machado em seu romance de 1899. Agora, uma nova obra que revisita o clássico estreia nos cinemas nesta quinta-feira, 27 de julho.

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Em Capitu e o Capítulo, filme de Julio Bressane, inspirado no livro, esses olhos pertencem a Mariana Ximenes, empenhados em enfeitiçar Bentinho (Vladimir Brichta). Amigos de infância, namorados na adolescência, os dois vão se casar, embora pertençam a classes sociais muito diferentes, desnível muito grave no Rio de Janeiro do século 19, quando escreve Machado de Assis.

Não espere aqui uma adaptação convencional do romance. Nem mesmo uma versão livre. Nos letreiros do filme, informa-se ter sido “extraído” de Dom Casmurro. Extração, na qual o todo pode valer pela parte e alguns traços se concentram para esboçar a complexa trama na qual o personagem masculino, já na velhice, recorda seus amores, casamento e desfecho de relações com aquela moça cheia de vida, esperta, inteligente e dona de um invejável senso tático e estratégico no trato com o sexo oposto.

O título do filme se refere a um comentário ouvido pelo cineasta do poeta e grande ensaísta Haroldo de Campos sobre o livro de Machado: “O importante não é Capitu, é o capítulo”. Traduzindo: interessa menos discutir se Capitu traiu ou não traiu Bentinho e mais debater a estrutura da obra. Haroldo, aqui, se refere ao motor central da trama de Dom Casmurro: a dúvida, quase certeza de Bentinho, da traição da esposa com seu melhor amigo, Escobar. Em acréscimo: quem seria o pai de Ezequiel, filho de Capitu: Bentinho, o marido, ou Escobar, o suposto amante?

Essa dúvida rói a alma de Bentinho e faz com que estrague várias vidas - a sua própria, a da mulher e, por fim, a do filho, caso ele o seja.

'Capitu e o Capítulo' é uma adaptação da obra de Machado de Assis pelo cineasta Julio Bressane, com Mariana Ximenes, Vladimir Brichta e Enrique Diaz Foto: Acervo/Globo Filmes

Machado de Assis segue versátil mais de cem anos depois

Essa tragédia do ciúme encontra-se de tal forma incrustada no cerne do romance que uma ensaísta norte-americana, Helen Caldwell, o chamou de “Otelo Brasileiro”, constatando a influência de William Shakespeare sobre o escritor brasileiro, nascido no Morro da Providência, no Rio de Janeiro.

De acordo com Haroldo de Campos, mais que em Capitu, deve-se prestar atenção ao formato do livro, dividido em 148 capítulos de tamanhos variáveis, alguns deles muito curtos. Não se trata de técnica incomum em Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas tem 160 capítulos e Quincas Borba, 201!

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O fato é que o poder sintético do escritor em cada unidade da narrativa pode ser reproduzido na tela através de flagrantes que, sem contar a história inteira, a tornam perfeitamente inteligível, mesmo para quem não conhece o livro. Essa foi a boa sacada de Bressane e orientou isso que, para simplificar, podemos chamar de adaptação criativa de uma obra literária. Ou “extração”, como ele prefere.

Desse modo, em cada cena eleita por Bressane, busca-se o máximo de significação. Há como uma compactação narrativa. A ambientação, quase em cenário único, é teatral, bem como a impostação de vozes dos atores e atrizes. A profundidade da fotografia (de Lucas Barbi) causa impressão é outro aspecto notável do filme.

De resto, mesmo de forma entrecortada, Capitu e o Capítulo reproduz os passos principais dessa obra-prima da literatura brasileira. Bentinho, já idoso (Enrique Diaz) recorda sua juventude e maturidade e se propõe escrever um livro a respeito. Os cortes o mostram na idade adulta (Vladimir Brichta) às voltas com Capitu (Mariana Ximenes). Escobar (Saulo Rodrigues) é casado com Sancha (Djin Sganzerla). Os dois casais são inseparáveis e projetam uma viagem juntos à Europa.

'Capitu e o Capítulo' é uma adaptação da obra de Machado de Assis pelo cineasta Julio Bressane, com Mariana Ximenes, Vladimir Brichta e Enrique Diaz Foto: Acervo/Globo Filmes

Adaptação traz à tona subjetividades das personagens

No filme, torna-se explícita uma condição tratada de forma oblíqua no romance - a atração recíproca entre o ciumento Bentinho e Sancha, mulher do seu amigo. A sugerir que a origem do ciúme doentio é sempre uma consciência culpada. O próprio Bentinho, em sua escrita, parece ter consciência desse sentimento quando cita a frase do Antigo Testamento: “Não tenha ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti.”

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Outro personagem da trama, José Dias (Claudio Mendes) tem presença importante. Representa a figura do agregado, instituição da época de Machado. Alguém que vive com uma família mas não pertence a ela por laços sanguíneos. Goza de status como conselheiro, ajudando em tarefas e viagens, ou simplesmente fazendo companhia a solitários. De qualquer forma, intervindo, como pessoa ambígua - está fora e está dentro - no universo familiar.

Quem conhece o livro sabe que a sagacidade de Capitu a leva a manipular o agregado para que ele influencie a mãe de Bentinho e ela desista da promessa de fazer do filho um sacerdote. O plano do casamento passa por eliminar essa possibilidade. No entanto, as artimanhas do agregado estão figuradas no filme apenas com uma elegante contradança entre ele e a assim denominada Jovem Senhora (Josie Antello). O baile é sutil. Movimento de corpos e música. Porém diz muito, e, às vezes, expressa o que as palavras não podem dizer. Por exemplo, da sabedoria de salão nos jogos de sociedade - que parecem apenas entretenimento, mas podem decidir destinos humanos.

O cinema tem meios de que a literatura não dispõe. E vice-versa. Por isso é tão interessante - e difícil - esse diálogo entre as artes.

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'Capitu e o Capítulo' é uma adaptação da obra de Machado de Assis pelo cineasta Julio Bressane, com Mariana Ximenes, Vladimir Brichta e Enrique Diaz Foto: Acervo/Globo Filmes

Cinema brasileiro ama adaptar Machado de Assis

Machado de Assis (1839-1908) é, talvez, o escritor brasileiro mais adaptado para o cinema. O próprio Bressane, antes de Capitu e o Capítulo, já travara diálogo com Machado em Brás Cubas (1985), tirado do clássico Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Esse romance, para muitos a obra-prima de Machado, teve outra versão para cinema com o título de Memórias Póstumas (2001), dirigida pelo cineasta paulista André Klotzel.

Comparar essas duas versões pode ser muito estimulante. Bressane inventa mais e propõe, de fato, um diálogo trans semiótico entre literatura e cinema. Esse aspecto não está ausente em Memórias Póstumas, mas nota-se que Klotzel procura aproximar-se o máximo possível do livro, ser o mais “fiel” que puder ao texto de Machado.

Bressane estabelece diálogos mais livres entre as obras. Faz, inclusive, seus próprios filmes conversarem entre si. Em Capitu e o Capítulo, por exemplo, podemos observar alguns trechos de Brás Cubas (1985), inclusive a sequência mais famosa, em que um microfone passeia sobre um esqueleto - já que em Memórias Póstumas de Brás Cubas, como diz o próprio título, o narrador está morto. É um defunto-autor, como diz Machado.

'Capitu e o Capítulo' é uma adaptação da obra de Machado de Assis pelo cineasta Julio Bressane, com Mariana Ximenes, Vladimir Brichta e Enrique Diaz Foto: Acervo/Globo Filmes

Capitu e o Capítulo não é a primeira versão para o cinema do romance Dom Casmurro. Já em 1967, Paulo César Saraceni havia levado o texto ao cinema com o título de Capitu. O roteiro é assinado por uma dupla famosa - a escritora Lygia Fagundes Telles e o crítico e ensaísta Paulo Emilio Salles Gomes. Mais tarde o roteiro foi publicado em livro. Lygia não gostava do filme, em especial por restrições à atriz Isabella, então casada com Saraceni, intérprete da famosa moça dos “olhos de ressaca”.

Quincas Borba, outro dos romances da trilogia máxima de Machado, junto com Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, foi para o cinema pelas mãos do diretor paulista Roberto Santos. Uma versão que não agradou à crítica.

Uma adaptação digna de nota é a da novela O Alienista, por Nelson Pereira dos Santos, rebatizada no cinema como Azyllo muito Louco (1970). Como se sabe, o texto ironiza a psiquiatria, com o médico Simão Bacamarte internando a população inteira de Itaguaí no hospício, já que todos, de alguma forma, se afastam da média, da chamada “normalidade”. Com senso de ironia, e também usando a alegoria como forma de driblar a censura, Nelson Pereira transforma o texto de Machado numa anárquica denúncia da ditadura militar, então vigente no país.

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O próprio Nelson Pereira já havia adaptado para as telas um dos contos mais conhecidos de Machado de Assis, Missa do Galo, em 1982. Outro conto, O Enfermeiro, virou cinema pelas mãos do diretor Mauro Farias em 1998. O legado de Machado de Assis parece inesgotável.

'Capitu e o Capítulo' é uma adaptação da obra de Machado de Assis pelo cineasta Julio Bressane, com Mariana Ximenes, Vladimir Brichta e Enrique Diaz Foto: Acervo/Globo Filmes

Julio Bressane fez alguns dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos

Carioca, nascido em 1946, Julio Bressane é um dos principais nomes do “cinema de invenção” no Brasil. Tem, em sua filmografia de primeira fase, títulos fundamentais como O Anjo Nasceu (1969) e Matou a Família e Foi ao Cinema (1970). Provocativos, cheios de imaginação e transgressões, estão entre os melhores filmes brasileiros de todos os tempos e são títulos fundamentais do assim chamado “cinema marginal” - embora seus integrantes não gostem do rótulo.

Mais tarde, Bressane enveredou por um cinema mais reflexivo, ensaístico e muito forte do ponto de vista imagético, fazendo a cultura brasileira dialogar com a cultura universal. São assim filmes como Sermões (1989), O Mandarim (1995), Miramar (1999), São Jerônimo, Dias de Nietzsche em Turim (2001) e Filme de Amor (2003). Seu trabalho é banhado pela música, pelo próprio cinema, mas também pela literatura e pela filosofia - esta última muito beneficiada pela parceria com a filósofa Rosa Dias, sua companheira de trabalho e de vida.

Bressane é um autor na acepção plena do termo. Seus filmes têm assinatura inimitável. São reconhecíveis desde os primeiros fotogramas.

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