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Kobra dá cor à sua história e vai além de sua obra em documentário

Com direção de Lina Chamie, filme conta, sem filtros, os altos e baixos na vida do grafiteiro brasileiro que espalhou sua arte por muros de todo o mundo

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Atualização:

Há que repetir, muitas e muitas vezes. Todos os caminhos levavam Lina Chamie a Eduardo Kobra. Nas ficções - Tônica Dominante, A Via Láctea - e no documentário São Silvestre, São Paulo tem sido personagem importante na obra dessa diretora que é também autora. Os caminhos terminaram por se cruzar. Kobra havia sido convidado para criar murais em Nova York, incluindo um na ONU. Lina foi sondada: e se ela o seguisse com sua câmera?

Tudo foi muito rápido, claro que com as dificuldades próprias para montar uma produção e atravessar uma pandemia. Lina foi a Nova York com o artista, e a essa altura já havia o desejo de transformar o registro num documentário sobre Kobra. Dois meses depois, ela gravou com ele no estúdio em São Paulo.

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“Nunca pensei numa coisa dessas, biografia, em ser confessional”, ele contou no Festival do Rio, no debate após a apresentação de Kobra - Auto Retrato na Première Brasil, no Cine Odeon. O filme estreou nesta quinta-feira, 17, em circuito nacional.

No fim de semana, eles estavam em NY. Lina, Kobra e a mulher, Andressa, o anjo da guarda que cuida dele. Foram mostrar o filme no Doc New York.

O grafiteiro Eduardo Kobra e a diretora Lina Chamie na gravação do documentário 'Kobra: Auto-Retrato'.  Foto: Patricia Pontes

Nova York

No sábado, logo após a apresentação, houve uma sessão de perguntas e respostas em que o público nova-iorquino pôde expressar seu respeito e sua admiração por Kobra. E, entre o Rio e Nova York, houve a Mostra de São Paulo, a exibição do filme no vão livre do Masp. “Foi a mais bela das exibições. Kobra é um artista da cidade. A obra dele abraça São Paulo e foi emocionante ver o filme rodando na tela e a cidade pulsando ao redor”, lembra Lina.

Kobra nunca havia pensado no autorretrato, mas se entregou a ele “com transparência e generosidade”, como conta a diretora. Ele retribui. “A Lina é uma grande artista e uma figura humana excepcional.” O filme, “uma celebração da arte, do cinema brasileiro”.

Inspiração no pai

Nascido no Campo Limpo, Carlos Eduardo Fernandes Léo começou a desenhar aos 7 anos. Aos 12, e já influenciado pela cultura hip-hop, descobriu o picho. Virou Cobra, inicialmente com C, porque muita gente já começava a se encantar com a beleza daquilo que ele fazia. O picho virou street art, ele passou a estudar a obra de artistas como Banksy e Jean-Michel Basquiat, e os grandes muralistas mexicanos. Hoje, Kobra tem mais de 3 mil murais, em 35 países.

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Mural de Eduardo Kobra pintado na sede da ONU. Foto: Mary Altaffer/AP

Em uma noite de insônia, Kobra, agora com K, se lembra. Como o grafiteiro ilegal percorreu essa trajetória única, pintando grandes murais pelo mundo. E como a arte de rua, por intermédio dele e de outros artistas, virou uma voz política e democrática. Nem tudo foram rosas. No meio do caminho, houve pedras. Os pais não aceitavam a opção do filho. Pintar grafites fugindo da polícia não era bem o que sonhavam para ele. Kobra teve de sair de casa, foi buscar seu caminho no mundo.

Nunca falou abertamente sobre isso com o pai, mas reconciliaram-se e ele descobriu que o “velho” guardava um álbum de recortes sobre a trajetória vitoriosa do seu guri. Hoje, mais maduro, reflete: “O que havia por parte dele era preocupação pela minha segurança. Como pai posso compreendê-lo, finalmente”. Por anos seguidos, Kobra pintava sem proteção, e as tintas tóxicas minaram sua saúde. Passou a beber, porque, de alguma forma, a bebida minimizava o mal-estar. Passava as noites em claro, insone. Com afeto, Andressa veio colocar ordem - paz interior? - em sua vida.

Herança

No documentário Kobra - Auto Retrato, o artista cria, com estudantes da escola que frequentou lá atrás - e da qual foi expulso -, um mural especialmente para o filme. Destaca a importância da educação.

São Paulo, aliás, é a tela para diversas obras de Kobra. Na Avenida Tiradentes, há uma enorme, representando a São Paulo de 1925. Pertence à série Muro da Memória, toda em sépia, ou preto e branco. Em geral, os murais são coloridos, como o cartaz que Kobra fez para a Mostra de Cinema deste ano (e virou vinheta). Os xadrezes, todos aqueles quadradinhos e losangos coloridos, são uma herança do pai, que trabalhava com restauro de sofás e carregava sempre o mostruário de tecidos, e cores.

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O repórter, que mora em Pinheiros, vive no centro de um triângulo formado por murais emblemáticos - os refugiados na igreja da Praça Benedito Calixto, o homem na bicicleta da Faria Lima e o Ayrton Senna da Paulista. Foram tantas as dificuldades, Kobra, aos 47 anos, finalmente sereno, sorri. E não dispensa aquele chapéu, uma herança do hip-hop, dos integrantes da banda Run-D.M.C., que nunca deixou de admirar.

Tem orgulho da arte democrática, energizada pela vibração que a rua lhe dá. O grafiteiro, o pichador, virou uma figura internacional. Convidado pelo presidente da República do Benin, ex-Daomé, vai pintar um mural na África ainda este ano. Fica uma semana no Brasil - voltou de Nova York na terça, 15 - e regressa aos EUA, a Miami, para nova encomenda. Chovem propostas de murais pelo mundo. Juntando o dinheiro que recebe por seu trabalho, criou o Instituto Kobra, que encara a arte como instrumento de transformação social para jovens e adolescentes em situação de vulnerabilidade.

Kobra com a obra ‘Ciência e Fé', no Hospital das Clínicas, em São Paulo.  Foto: Werther Santana/Estadão

Documentário celebra dois Brasis que dialogam e se completam

O que é o cinema? Teóricos como André Bazin fizeram-se a pergunta que o espectador comum talvez não formalize, mas, por instinto, sabe o que é. Basta pegar a obra autoral de uma diretora como Lina Chamie. No fim de semana, ela estava em Manhattan, participando do Doc New York com seu documentário Kobra - Auto Retrato. Lina morou por 13 anos na Big Apple. Assistiu a seu filme no mesmo cinema da 6.ª Avenida em que, garota, viu o cultuado Veludo Azul, de David Lynch. Há 20 anos, em 2001, Lina criou aquela cena emblemática em Tônica Dominante.

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O clarinetista Fernando Alves Pinto desce a Xavier de Toledo deserta, rumo ao Teatro Municipal, cuja orquestra integra. A cena não é necessariamente narrativa, não faz andar a história, mas, então, por que só aquilo é capaz de produzir emoção? Perturbação? É daqueles momentos que não significam nada, mas podem significar tudo, dependendo do olhar. Lina tem alternado ficções e documentários. Filmou a Corrida de São Silvestre, homenageou seu time do coração, o Santos F.C. O biografado da vez é Kobra.

O doc estrutura-se em dois movimentos. Revela a obra, as obras, mas também o artista. Como se pinta na rua? Como se filma a rua? Esse encontro da autora bem-nascida na elite, que teve uma educação esmerada, com o grafiteiro que veio da periferia, celebra dois Brasis que podem dialogar, e mais que isso, completam-se.

Confessional

Uma arte nascida na vibração da rua, que Lina, como Kobra, também ama. Impressiona o tom confessional, transparente e sincero. Não é só um homem contando sua história. É um brado democrático, como naquele mural na escola, que clama por educação.

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