O cineasta Sam Crane estava tendo uma crise existencial durante a pandemia quando, no ápice do isolamento social, abraçou o mundo dos games. Começou a circular por esses universos digitais até que conheceu GTA – game em sua quinta edição e conhecido pela violência desenfreada. Foi nesse contexto que o britânico entendeu que poderia reviver o teatro ao encenar Hamlet no jogo, com pessoas desconhecidas e muita imprevisibilidade.
A experiência toda é contada em Grand Theft Hamlet, estreia na MUBI nesta sexta, 21.

“Como ator de teatro, senti que talvez nunca mais pudéssemos fazer isso da mesma forma. Eu odiava a ideia de fazer peças pelo Zoom. Até que meu filho me apresentou a alguns youtubers que estavam transmitindo conteúdos dentro do Minecraft, criando narrativas fictícias no jogo. Isso abriu minha mente para o que era possível com games”, diz Crane ao Estadão.
A partir daí, ele e um amigo ator, Mark Oosterveen, começaram a experimentar linguagens dentro de GTA. Andaram pelo mundo digital, conheceram pessoas – mataram várias delas e foram mortos por muitas outras. Até que, nessa andanças, se depararam com um teatro. “Nós descobrimos todo um mundo de role-playing dentro dos jogos, especialmente em GTA. Não conhecia nada disso e achei muito bonito e criativo”, conta o diretor.
Carl Johnson ou o Príncipe Hamlet?
Logo, tiveram a ideia de encenar a peça ali mesmo. Algo mais voltado para Shakespeare, já que o game chega com todo o drama, a grandiosidade, a violência e a vingança que o mundo conhece também na obra do britânico. Nesse ponto, a esposa de Sam, a documentarista Pinny Grylls, entrou na jogada. Enquanto Sam arquitetava como encenar a peça dentro de GTA, Grylls gravava cada detalhe para transformar tudo no documentário que estreia agora na MUBI – vale dizer, apenas com imagens do jogo e nada de humanos.
“Como documentarista, já fiz filmes sobre teatro, balé e dança. Nunca havíamos trabalhado juntos antes, mas eu observava o que ele estava fazendo e pensava: ‘isso tem um potencial incrível para uma grande história’”, conta ela. “O que eu não percebia na época era que esse projeto era uma conversa não só entre o jogo e Shakespeare, mas também com nossas próprias vidas. Isso se tornou o coração do filme: como unir essas três coisas.”
A decisão por Hamlet, enquanto isso, foi natural. Não só sentiram uma confluência desses dois mundos, como também entendiam que isso poderia atrair pessoas do jogo para a proposta da dupla. “Acho que Hamlet é uma peça muito conhecida. Queríamos algo que as pessoas dentro do jogo pudessem reconhecer. Alguns jogadores podem conhecer Shakespeare, outros não, mas quase todos já ouviram falar de Hamlet”, diz Pinny. “Ao dizer que era Hamlet, eles poderiam já ter ouvido falar daquilo. Isso tornava tudo mais acessível.”
Crane vai além na provocação. “Hamlet combina muito bem com GTA. Muitas pessoas podem nunca ter jogado o game, mas é um fenômeno cultural gigantesco. Todo mundo já ouviu falar. E isso acontece também com Hamlet”, explica. “Muitas pessoas nunca assistiram à peça ou nunca a leram, mas acham que sabem do que se trata. Algumas até têm uma visão negativa, lembrando das aulas na escola, achando que era chato ou difícil de entender. Da mesma forma, algumas pessoas têm uma visão negativa dos videogames.”
Assim, juntar esses dois fenômenos culturais, que muitas vezes são mal compreendidos, foi uma forma de mostrar como eles podem revelar coisas novas um sobre o outro.
E o melhor de tudo: o resultado é surpreendentemente engraçado, chegando a fazer gargalhar de verdade. Afinal, é divertido ver Sam, Pinny e Mark tentando entender aquele mecanismo digital e sofrendo consequências severas no processo. Em um momento de brilhantismo, por exemplo, Sam está tentando encenar Hamlet quando um grupo chega para matar seu personagem. Ele não aceita a morte passivamente: pega uma arma e começa a atirar em todos ao seu redor, gritando que ninguém “pode acabar com a arte”.
Em outro momento, um jogador que aceitou participar da encenação – e que não é conhecido dos cineastas – simplesmente esquece o texto e começa a recitar o Alcorão no meio do jogo (ou, melhor, da interpretação de Hamlet). Tudo é natural e divertido.

União de mundos
Muito se questiona como o cinema pode se relacionar com os videogames. Afinal, os tais filmes interativos foram uma aposta da Netflix entre 2018 e 2020, mas se perderam no caminho. Enquanto isso, adaptações de games de sucesso geralmente não vão bem de bilheteria e não agradam críticos e fãs. Agora, Grand Theft Hamlet tenta romper isso de vez.
Para começar, a dupla de cineastas entende que GTA, praticamente sem querer, trouxe novas revelações sobre a peça de Shakespeare que eles sequer tinham percebido. “Muitas pessoas que viram o filme estão nos apontando temas que nem tínhamos percebido”, diz Pinny. “Alguns especialistas em Shakespeare até nos disseram que revelamos novos significados, como a questão das máscaras e das identidades ocultas.”
Mas, mais do que isso, Grand Theft Hamlet tenta mostrar que há espaço para mais ideias, experimentações e provocações. “Estamos apenas começando. Especialmente no teatro, há muitas possibilidades de criar algo híbrido”, diz Pinny.
“Teatro e videogames estão profundamente conectados”, complementa Sam. “Ambos envolvem interpretação e imersão. Há um certo preconceito no mundo do teatro contra os videogames, como se fossem uma forma de arte inferior. Mas espero que tenhamos mostrado que não é assim. Que videogames podem ser tão válidos artisticamente quanto o teatro. E que os dois podem se combinar de maneira fascinante.”