The New York Times - Décadas depois de iniciada sua carreira singularmente bem-sucedida como ator, Paul Newman ofereceu uma admissão franca. “Estou diante do fato terrível de que não sei nada”, disse ele.
Quando fez essa confissão, Newman estava na casa dos 60 anos, época em que já havia estrelado uma vida inteira de filmes seminais, como Gata em Teto de Zinco Quente, Desafio à Corrupção, O Indomado, Rebeldia Indomável e O Veredicto. Ele era uma celebridade reconhecida por toda parte e, ainda que relutante, idolatrado por seu jeito calmo, seus penetrantes olhos azuis e seu casamento aparentemente perfeito com a talentosa Joanne Woodward. Ele tinha criado uma família e ocupava um lugar na lista de inimigos do presidente Richard Nixon por sua defesa de causas progressistas. Dirigia carros de corrida e se dedicava à filantropia.
No entanto, Newman, que morreu em 2008, era perseguido pela dúvida, sempre questionando suas escolhas e atormentado por erros do passado. “Estou sempre pronto para admitir o fracasso”, disse ele. “Por não ser bom o suficiente, não ter feito a coisa certa”. Apesar de suas hesitações, acrescentou ele: “Estou certo de que ninguém pode ser sempre responsável pelo que as outras pessoas são. Você só pode ser responsável por quem você é”.
A insegurança ao longo da vida de Newman é um dos temas mais marcantes a emergir de um livro de memórias póstumo do ator, intitulado The Extraordinary Life of an Ordinary Man. O livro, que a Knopf lançará na terça-feira, 18, surpreende pela notável franqueza de seu tema, um dos atores mais talentosos e reticentes de uma época em que a documentação da vida cotidiana não era condição para a fama.
Newman não se furta a falar sobre assuntos delicados: mergulha profundamente nas memórias e reflete longamente sobre a infância difícil, o casamento que abandonara antes de se casar com Woodward, o consumo excessivo de álcool e a perda de seu filho, Scott, que morreu de uma overdose acidental de drogas e álcool.
A vulnerabilidade que Newman revela no livro é surpreendente até para pessoas que o conheceram de perto. “Achava que ele era o Super-Homem, até meus 20 e poucos anos e mesmo depois disso”, disse Clea Newman Soderlund, a mais nova das cinco filhas do ator. Embora estivesse familiarizada com muitas das histórias que seu pai compartilha, ela disse: “Eu definitivamente não sabia como essas histórias eram complexas e traumatizantes para ele”.
As memórias não são o resultado de Newman sentado na frente do teclado e digitando sua história pessoal. O livro é montado a partir de cinco anos de entrevistas que o ator concedeu, entre 1986 e 1991, a Stewart Stern, roteirista (Juventude Transviada) e amigo próximo.
Stern morreu em 2015, momento em que as entrevistas foram dadas por perdidas; as transcrições só foram recuperadas recentemente, junto com transcrições de conversas que Stern conduziu com membros da família de Newman (incluindo Woodward) e colaboradores como Elia Kazan, George Roy Hill e Martin Ritt.
Suas vozes também estão no livro, cumprindo o desejo de Newman de que elas acompanhassem seus relatos - e, quando necessário, contradissessem seus equívocos - e fornecessem uma imagem mais completa de quem ele era.
“Ele era fascinado por essa ideia de como as pessoas o viam versus como ele se sentia sobre si mesmo”, disse sua filha Melissa Newman. “Sempre tive essa visão do meu pai ao lado de um outdoor gigante dele mesmo. E ele está acenando na parte inferior do outdoor, dizendo: ‘Estou aqui’”.
No final de setembro, ela estava falando da casa rústica em Westport, Connecticut, que ela chamava de “casa hippie”, que seus pais compraram há cerca de 60 anos (e ela depois comprou deles), recheada de cima a baixo com lembranças de suas vidas e carreiras: fotos de seu pai com Frank Sinatra e Louis Armstrong, e de sua mãe dando banho em cachorros na pia da cozinha.
Do outro lado do rio Aspetuck havia outra residência familiar, um celeiro com painéis de madeira cuja decoração era dominada por um grande retrato de Newman como Buffalo Bill. O caminho entre as duas propriedades passava por uma passarela e uma casa na árvore que muitos anos atrás, disse Soderlund, era onde Woodward “costumava ir e se esconder de todos nós quando não aguentava mais”.
Foi em uma lavanderia nesta propriedade que uma amiga da família, a cineasta e produtora Emily Wachtel, encontrou um armário trancado contendo uma parte das entrevistas de Stern com colegas e confidentes de Newman. Mais tarde, Wachtel descobriu que uma unidade de armazenamento continha as transcrições das entrevistas de Newman com Stern.
“Nessas caixas estava escrito ‘P.N. história’. Quando as abri, encontrei cerca de 5 mil páginas”, disse Wachtel. “A família não tinha visto”.
Peneirar as transcrições brutas foi uma tarefa difícil para as filhas de Newman. “Fiquei paralisada por sua tristeza profunda”, disse Soderlund. “Esse peso foi muito difícil para mim. Eu tive que ler aos poucos”.
Com a ajuda de um agente literário, a família Newman vendeu um projeto biográfico baseado nas transcrições para a Knopf e, com a ajuda da editora, David Rosenthal - um veterano editor de livros e revistas - foi contratado para compilar o material em um livro de memórias.
O livro
Começando com uma cena de si mesmo sentado no sofá de sua biblioteca - onde, Newman diz, “Acabei de fumar um baseado e me lembrei com absoluta clareza de todo o mapa da minha cidade natal” - ele fala sobre sua infância em Shaker Heights, Ohio. O pai de Newman ajudava a administrar a empresa de artigos esportivos da família, bebia muito e parecia não ter interesse pelos filhos. Sua mãe, por outro lado, praticamente o fetichizava, e Newman se compara a um de seus cães “que ficavam cancerosos e tão obesos que mal conseguiam se mexer, mas minha mãe continuava lhes dando chocolates até matá-los de bondade”.
Newman, que era judeu por parte de pai, sentiu o antissemitismo na escola e na Marinha durante a Segunda Guerra Mundial.
Ele conta que entrou em uma briga com um colega marinheiro que o insultara, usando suas habilidades de luta livre para jogar seu oponente no chão e machucar seu braço. “Quando se levantou, ele só conseguia mover uma das mãos”, diz Newman. “A briga acabou e ninguém nunca mais me incomodou”.
No entanto, a experiência de guerra deu a Newman pouca maturidade ou direcionamento pessoal - ele a compara a “estar em turnê com a peça de A Megera Domada, passando por Schenectady, Poughkeepsie e todo o norte do estado de Nova York”.
Como estudante de graduação no Kenyon College, ele se dedicou à bebida, às mulheres e ao trabalho de atuação que sua mãe o encorajara a seguir.
Ele se casou com Jackie Witte, colega estudante de teatro com quem teve três filhos. Mas algo nele só se acendeu quando ele conheceu Woodward na produção da Broadway de Picnic, de William Inge, em 1953. Como diz Newman: “Joanne deu à luz uma criatura sexual. Ela me ensinou, ela me encorajou, ela se deleitou com a experimentação. Eu estava em busca da luxúria”.
O caso de Newman com Woodward mal era escondido e, embora ele tenha se divorciado de Witte e se casado com Woodward, ele se arrependeu de ter magoado os filhos que teve com Witte e não ter explicado suas ações. “Eu me via em algum lugar no meio do caminho”, diz Newman. “Um pouco de ruim, muito bom - e eu sustentava a família. Mas o que fiz simplesmente não teve nenhuma classe”.
Sua ascensão astronômica como ator continuou: Newman foi indicado a dez prêmios competitivos da Academia e ganhou por A Cor do Dinheiro, em 1987. (Ele também recebeu um Oscar honorário em 1986 e o Prêmio Humanitário Jean Hersholt da Academia em 1994).
Mas sua vida não estava livre de decepções e tragédias. Ele lutou com a bebida, um hábito que ele sabia ser autodestrutivo, mas diz que “desbloqueava muitas coisas que eu não poderia ter feito sem ela”. E ficou arrasado quando seu filho, Scott, que levava a vida à sombra do pai e estava recebendo tratamento psiquiátrico, morreu em 1978, aos 28 anos.
“Percebo que há algo de grotesco em dizer ‘me perdoe’”, diz Newman. “A energia lá em cima que representa aquele garoto vai me mostrar o dedo e dizer: ‘Bem, o que eu devo fazer com isso?’”
Mesmo assim, o próprio Newman parecia acreditar que havia limites para o quanto ele poderia realmente revelar para outras pessoas.
Como ele diz no livro, o público acreditava que ele era Hud ou Butch Cassidy ou qualquer outro personagem de filme que ele interpretara, mas tudo isso era só “uma casca que é fotografada na tela, que é perseguida pelos fãs e que fica com toda a glória. Quem está dentro de mim de verdade, o núcleo, continua inexplorado, desconfortável e desconhecido”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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