Em ‘O Lodo’, absurdo e racionalidade convivem no labirinto traumático recriado por Helvécio Ratton

Filme em cartaz nos cinemas é uma adaptação de conto de Murilo Rubião

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio

Manfredo é competente avaliador de riscos em uma companhia de seguros em Belo Horizonte. Mora só e sempre viveu bem. De uns tempos para cá, sente-se sem vontade de nada. Nem de trabalhar nem de namorar. Vai procurar um psicanalista. E aí começa a história de O Lodo, adaptada pelo diretor Helvécio Ratton do conto homônimo de Murilo Rubião.

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Manfredo (em grande interpretação de Eduardo Moreira) tem uma visão, digamos, incompleta da psicanálise. Buscou-a para abordar o problema do presente e não para escavar em seu passado distante. Muito menos para cavar fundo em terreno que seria preferível esquecer. O analista, Dr. Pink (Renato Parara), lhe explica que precisa evocar a infância e tudo o que nela foi reprimido, para trazer à tona o lodo que invade sua alma. Daí o título do conto e do filme.

A história, se fosse contada em chave apenas realista, mostraria esse funcionário em crise de meia idade, amante um tanto desinteressado da mulher do chefe, acossado por um concorrente numa época de mudanças na empresa, de repente insatisfeito consigo mesmo. Sua vida, provavelmente bastante satisfatória tempos atrás, parece desmoronar aos poucos e, logo, de maneira rápida e definitiva.

Cena do filme O Lodo, baseado em conto de Murilo Rubião Foto: Bianca Aun

Fiel ao estilo de Rubião, escritor que mescla o realismo e o fantástico em sua literatura, o diretor encaminha a trama num labirinto traumático. Absurdo e racionalidade convivem, mas o primeiro acaba por dominar a segunda.

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A começar pelo fato de o psicanalista não concordar com a interrupção do tratamento, como é desejo do paciente. Na verdade, Manfredo vai apenas uma vez ao consultório. Ao ver que o tratamento não seria aquilo que imaginava, não concorda em marcar novo horário de consulta. Dispõe-se a pagar o primeiro encontro e encerrar o caso. No entanto, o psicanalista e sua secretária, o perseguem. Marcam horários à revelia do paciente e vão colocando como débito as consultas às quais ele não comparece. A dívida avoluma-se e vai parar na justiça.

É apenas o aspecto mais visível da derrocada de Manfredo, atormentado com a situação da firma, mas também com a insistência da imagem que se instala em sua cabeça. Nela, percorre um corredor e vê uma moça seminua atrás da porta entreaberta. Quem será? Além disso, recebe a visita incômoda da sua irmã, acompanhada por um estranho sobrinho. Diz não ter para onde ir e que vai se instalar no apartamento de Manfredo.

O Lodo é obra de vários níveis. No primeiro é apenas isso, um homem com problemas que acaba piorando ao tentar resolvê-los com um profissional de saúde mental. De outro, a exacerbada relação de poder que se estabelece entre psicanalista e paciente (ou analisando, se se quiser). No filme, é algo de ordem expressionista, pois, como se sabe, é preciso que alguém deseje ser analisado para que a relação se estabeleça. Aqui, ela é compulsória. Mas é apenas um recurso para despegar a história do realismo mais estreito.

De modo que o Dr. Pink é mostrado como uma espécie de seguidor inconsciente do psiquiatra Simão Bacamarte do clássico O Alienista, de Machado de Assis, com seu furor de curar os “anormais”, mesmo na marra. O ambiente de O Lodo, no centro de Belo Horizonte, adquire feição que lembra Kafka e seus personagens sem qualquer controle sobre o que lhes acontece, como K. em O Processo. Assim como K., Manfredo quanto mais quer se livrar de algo que o arrasta, mais se afunda…no lodo.

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A história é de um lado uma avaliação dos tratamentos mentais e seus desvios autoritários, mas também dos efeitos da vida competitiva sem sentido, da alienação e dos processos de busca de autonomia, tão badalados hoje e tão fúteis, no fundo. A liberdade é uma palavra linda, que todos se sentem autorizados a usar, mas poucos de fato a exercem.

Filme de muitos méritos, O Lodo tem como destaque o elenco, quase todo ele tirado do grupo mineiro Galpão. A fotografia de Lauro Escorel é envolvente em suas variações, consoante com o clima de incômodo crescente da história. Apesar de alguns elementos de fantástico, como a orelha em forma de labirinto ou órgão sexual, e a recorrente imagem da mulher nua, um trabalho de câmera menos convencional poderia acrescentar como sensação aquilo que já se encontra em conceito. Ou seja, o absurdo de tudo, o indefinido mal-estar no mundo. Mas Ratton opta pela discrição.

Veja o trailer de O Lodo

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