Ao explicar qual Amazônia foi buscar no conto O Adeus do Comandante (presente no livro A Cidade Ilhada, de Milton Hatoum), inspiração para o filme O Rio do Desejo, que estreia nesta quinta, 23, o cineasta Sérgio Machado volta ao (próprio) passado. Relembra o personagem de seu primeiro longa, Onde a Terra Acaba (2001), sobre Mario Peixoto (1908-1992), diretor de Limite (1931).
“Mario dizia que, no cinema, tudo deve ser dito de maneira indireta”, avisa Machado, insinuando que a sutileza, a sugestão e ambiguidade são valores essenciais à história de amor. “A Amazônia nesse filme é bela, mas também sombria e assustadora. Os problemas vividos pelos protagonistas são grandes, mas se tornam ínfimos diante da imensidão da floresta e da força do rio. Há um pensamento político na obra do Milton, mas o que mais me fascina são os mistérios, os segredos, as coisas não ditas, os silêncios, a forma como o passado de algum modo se engendra no presente. Tentei preservar isso no jeito de filmar O Rio do Desejo. Busquei também que a interpretação dos atores desse conta das sutilezas e subtextos, uma vez que se trata de uma literatura onde as coisas mais importantes residem nas entrelinhas. Daí fazer um filme que avança a partir de contrastes entre planos fechados e muito abertos.”
Machado, hoje com 54 anos, transformou O Adeus do Comandante em filme escrevendo o roteiro com uma das maiores especialistas na obra de Hatoum - Maria Camargo, que o escritor define como sua “irmã espiritual”, sua “salvação no audiovisual” -, trazendo ainda as ideias de George Walker Torres. O foco: a fraternidade e o peso que um amor coletivo de três irmãos por uma mesma mulher tem sobre a ideia de família ali desenhada. Mas houve um cuidado da direção em não objetificar a figura feminina, Anaíra, vivida por Sophie Charlotte.
“Vivemos nos últimos anos um período sombrio, de retrocessos terríveis. Acredito que o desejo feminino, no filme, pode motivar debates. Tentei conceber Anaíra como mulher senhora do seu destino, que não cabe nas convenções. O filme fala também de conservadorismo e de repressão do desejo. Talvez a tragédia que marca aquela família possa ter algum paralelo com a onda moralista e repressora que se abateu sobre o País”, pondera o cineasta.
Ele acha importante “levar a Amazônia para as telas a partir de uma história escrita por um amazonense. É uma forma de mostrar como vivem as pessoas de lá”. A literatura de Hatoum, acrescenta, “leva as pessoas a conhecerem a região Norte. Adaptar Milton é um privilégio. Ele virou um amigo. Estou me preparando para levar às telas Cinzas do Norte”.
Calcado no princípio de que “talvez haja algo de político em narrar uma história de amor numa época de tanto desamor”, Machado vê no idílio de O Rio do Desejo uma forma de resistência. Sua trama é uma ciranda de quereres. Ao se apaixonar pela misteriosa Anaíra, Dalberto (Daniel de Oliveira) abandona seu trabalho na polícia e vai comandar um barco. O casal passa a viver na casa que Dalberto divide com os dois irmãos, às margens do Rio Negro. Essa vida flui bem até Dalberto ser obrigado a se arriscar em uma longa viagem rio acima. Em meio a essa jornada, desejos proibidos vêm à tona. Enquanto Dalmo (Rômulo Braga), o irmão mais velho, luta para controlar a atração que sente pela cunhada, Anaíra e Armando, o caçula, vivido por Gabriel Leone, se aproximam. A volta de Dalberto reúne os três irmãos apaixonados pela mesma mulher.
“Todos os projetos que fiz até agora partiram de um genuíno interesse de retratar o Brasil de maneira fiel. Meu primeiro trabalho no cinema foi viajar pelo País de carro procurando elenco e locações para Central do Brasil. Desde então, repeti muitas vezes esse movimento. Não vejo esse trabalho como pesquisa, mas como desejo de me integrar, trocar experiências. Durante a preparação de O Rio do Desejo, viajei meses pelo Norte, procurando locações, fazendo testes de elenco. E o maior aprendizado foi que as questões essenciais são comuns a todos. Todo mundo quer ser amado, tem medo de morrer, gosta de ser tratado como igual”, ressalta.
Terminado o lançamento de O Rio do Desejo, Machado parte para finalizar a animação A Arca de Noé, rodada com o peruano Alois de Léo. É uma adaptação dos poemas de Vinícius de Moraes (1913-1980), com as vozes de Marcelo Adnet e Rodrigo Santoro emprestadas a dois ratos que lutam para se salvar do Dilúvio. “Já se vão alguns anos desde que a Arca começou a ser concebida por mim, Suzana de Moraes e Walter Salles. É um sonho antigo. Sempre quis fazer uma espécie de fábula antifascista para crianças. Falar da importância de lutar pela liberdade e do papel dos artistas nessa conquista.”
O projeto foi feito em 3D e a CMG, uma distribuidora americana, já vendeu o filme para mais de 25 países, mesmo antes de ficar pronto. “A parte artística está quase toda pronta, falta finalizar o lado técnico que vem sendo tocado principalmente pela indiana Symbiosis. Parte da nossa equipe se deslocou para lá para garantir a qualidade da finalização”, diz o diretor. “Nosso desejo sempre foi o lançar o filme no Festival de Annecy, em junho, mas é possível que a estreia só aconteça no final do ano.” O produtor Fabiano Gullane já está sugerindo “arregaçar as mangas e pensar em A Arca de Noé 2.”
Entrevista: Milton Hatoum, escritor
O que uma arte da imagem como o cinema simboliza para um artesão da palavra?
Sou fã do neorrealismo italiano. Adoro a maneira como eles unem a literatura à imagem, como Visconti fez com Noites Brancas captando a essência do romance. Gosto de Tarkovsky, admiro os iranianos e reconheço Godard como um dos grandes. Na literatura, o silêncio dá voz ao leitor. Na tela, como não reconhecer a força do silêncio em Bergman? Mas sou menos seletivo com filmes do que com a literatura.
Seus romances apresentaram Manaus ao Brasil, alfabetizaram o País com a cultura amazonense. Mas esse processo de “alfabetização” se estende por outras praças literárias?
Antônio Cândido ia gostar dessa pergunta, por defender que uma das faces da literatura era oferecer ao leitor o conhecimento sobre a realidade, com profundidade. Há um caso recente de sucesso, O Torto Arado, no qual o Itamar Vieira Jr. nos informa sobre a luta das populações negras contra uma opressão que se estende há tempos. Às vezes surgem, sim, livros que despertam o País para o que estava latente. Mas cada livro tem seu tempo.
Como em Dois Irmãos, a trama de O Rio do Desejo fala de fraternidade. O que essa palavra significa literariamente para a sua obra?
Fraternidade é o sonho solidário que não aconteceu neste país.
Seu interesse por Tarkovsky passa pela habilidade de contemplar o tempo. Qual a noção de tempo que a Amazônia de seus livros oferece?
Na minha infância manauara, o tempo que me importava não era o do relógio, mas o da contemplação, uma herança da cultura indígena. Nas viagens pelo Alto Rio Negro, você não vê mais cidade. É rio. Só rio. É você, num barco, e um mundo fora do tempo empírico. O que agita as águas do presente é o romance, a ficção. O tempo subjetivo é o guia.
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