É possível entender um pouco de Kleber Mendonça Filho em cada um de seus filmes. Como é natural, muito do que ele pensa, vive e fala está retratado em suas histórias, como O Som ao Redor, Aquarius e Bacurau. No entanto, nenhum filme é tão pessoal e particular quanto Retratos Fantasmas, documentário do cineasta que chega aos cinemas nesta quinta-feira, 24.
O filme começa causando um estranhamento. Durante cerca de meia hora, Kleber nos mostra seu apartamento de infância. Vemos momentos do passado, que ficaram guardados ao longo dos anos – décadas! – em fitas nascidas a partir de uma câmera de VHS que a mãe do cineasta comprou, ainda nos 1990, a muito custo. “Era uma câmera cara”, diz ele em conversa com o Estadão, em São Paulo, em uma agenda apertada de entrevistas.
Neste primeiro momento, conhecemos detalhes do apartamento, da vida do jovem Kleber e, principalmente, do entorno. Ele, a mãe, os amigos e o cachorro do vizinho estão ali, vivos na memória daquelas fitas para sempre. São fantasmas. A mãe não mais vive. O cachorro se foi. Kleber está mais velho. Os amigos também. Eles resistiram ao tempo. “Diferente do que acontece com outras pessoas, as fitas não mofaram. Tive cuidado. As fitas sobreviveram muito tempo”, contextualiza ele, que as digitalizou nos anos 2000.
Depois desse primeiro momento em que analisa seu entorno, e as transformações que o tempo causaram em sua vida e na rua ao seu redor – retratada, inclusive, em vários filmes do cineasta ao longo dos anos –, Kleber parte para a cidade. Afinal, mais do que filmar aquilo que os olhos viam de sua janela, o cineasta saiu pelo Recife filmando tudo o que via.
Futuras ruínas
“Comecei a filmar muitas coisas. Cidade, amigos… Foi a época que a gente viu a cidade de um jeito muito bom. Cara, a gente gostava da nossa cidade. A gente filmava muita coisa”, diz. Nessas andanças com a câmera na mão, começou a filmar uma paixão que existia desde sempre: os cinemas. Segundo ele, já naquela época, existiam três tipos de cinemas de rua: as ruínas, os fechados e os que Kleber tinha certeza de que iam fechar em breve.
O resultado disso são as outras duas partes de Retratos Fantasmas, que sai do micro e parte para o macro, analisando as transformações da cidade em que viveu e como isso afetou invariavelmente os cinemas de rua. As pessoas desocuparam esses espaços e logo partiram para os shoppings.
A fita da câmera VHS, assim, era a maneira que ele via de eternizar esses espaços e de mostrar sua visão do que estava acontecendo. “O melhor ponto de partida para uma história é você. A grande questão é, e me faço essa pergunta o tempo todo, se alguém vai se importar com isso. Essa é a grande questão”, diz ele, rindo.
Conversa com o público
Mesmo falando de sua realidade e de seu passado, Kleber conversa com o público ao longo do filme. Além disso, mais do que falar sobre a transformação da cidade ou dos cinemas do Recife, Kleber mostra como aquele espaço, com poltronas, som, pipoca e uma tela, também é um templo. Um espaço de fantasmas. O cachorro do vizinho late no hoje, a mãe fala no agora.
Kleber, que se formou jornalista e hoje é um cineasta reconhecido no mundo, criou mais fantasmas. Seus filmes ajudam a propagar esses fantasmas para além de Recife – chegando a Gramado, a Cannes, a São Paulo. São retratos fantasmas, agora eternizados de vez sob esse prisma.
“Há muito tempo que eu sempre tive essa sensação de que você vai ver um grande clássico em um cinema e eu tenho certeza de que eu só estou vendo fantasmas. Todo mundo ali já morreu. O diretor morreu, o Cary Grant morreu. Aquelas pessoas não existem mais. Elas também interpretam personagens fictícios que também são fantasmas, de certa forma”, diz. “É uma visita para outra dimensão quando vemos um filme, no campo espiritual mesmo. O centro da cidade, as salas de cinemas, as ruínas são espaços rodeados de fantasmas. O filme se alimentou dessa sensação”.
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