ENVIADA ESPECIAL A LOS ANGELES - Emilia Pérez chegou ao Oscar, na noite do último domingo, 2, desidratado após um turbilhão de controvérsias. De suas 13 indicações – recorde para um filme não falado em inglês –, levou apenas duas: Melhor Atriz Coadjuvante, para Zoe Saldaña, e Melhor Canção Original, para El Mal.
As vitórias nas categorias eram esperadas, mas foram poucas para um filme que, há apenas alguns meses, era considerado o franco favorito na temporada de premiações e era visto como aquele que, finalmente, poderia trazer uma vitória em Melhor Filme para a Netflix, sua distribuidora nos Estados Unidos.
A trajetória do longa de Jacques Audiard provou como é possível um filme ver seu favoritismo evaporar em tempo praticamente recorde, e ajudou a impulsionar o senso de indefinição que, por muito tempo, pairou sobre a temporada de premiações este ano, antes de Anora começar a se destacar nos prêmios dos sindicatos americanos, como o PGA (dos produtores) e o DGA (dos diretores).
Emilia Pérez causou burburinho pela primeira vez no Festival de Cannes, em maio passado, quando saiu de lá com o prêmio do júri e o prêmio de Melhor Atriz, dividido entre Karla Sofía Gascón, Zoe Saldaña, Selena Gomez e Adriana Paz. Saiu de lá, também, com o acordo de distribuição já firmado com a Netflix, que logo o alçou como seu grande representante às premiações.
Parecia uma fórmula certeira. O filme tem um diretor consagrado, Audiard, renomado por trabalhos como O Profeta e Deephan; tem dois nomes grandes o suficiente para chamar atenção da mídia (Saldaña e Gomez); é protagonizado por uma atriz que, tal qual sua protagonista, é uma mulher trans (Gascón); e tenta inovar na forma de contar sua história com o apoio do gênero musical.

Digo “tenta” porque, ao contrário de muitos colegas da crítica, não acredito que Emilia Pérez consiga, de fato, ser inovador como se propõe a ser – considero que ele foi muito bem-sucedido, porém, ao se vender como tal, tanto que, na junção de todos os fatores citados acima, acabou abraçado por festivais e premiações ao redor do mundo e, claro, em Hollywood.
Os primeiros sinais de problema, porém, vieram em novembro, quando o musical estreou na Netflix nos Estados Unidos e não foi bem recebido pelo público. Logo começaram a ser divulgados nas redes sociais trechos pouco abonadores da produção, como a constrangedora sequência em que Rita (Saldaña) pede informações sobre como funciona uma cirurgia de redesignação sexual a um médico – sim, a infame sequência do “man to woman, from penis to vagina”.
Sobraram críticas também ao espanhol de Selena Gomez e às representações questionáveis que o filme faz tanto da transexualidade de sua personagem-título quanto da sociedade mexicana. A protagonista do longa, vale lembrar, começa a história como chefe do tráfico, mas decide fazer a transição para viver como a mulher que sempre quis ser e deixar a vida de crimes para trás.
Não ajudou que Audiard tenha dado uma entrevista dizendo que não estudou sobre o México para contar uma história situada no país, ou que sua diretora de elenco tenha falado que, sim, a produção buscou atores mexicanos para os seus papéis principais, mas no fim viu em Saldaña e Gomez as melhores opções para seus respectivos papéis.
Não vou, aqui, destrinchar cada um destes pontos, que poderiam render textos à parte, mas basta dizer que boa parte do público não gostou do que viu – e não teve pudor algum em expressar isso nas redes sociais.

Até então, porém, Hollywood parecia de certa forma imune à essa reação dos espectadores, tanto que Emilia Pérez passou a colecionar indicações nas principais premiações da temporada. O filme, inclusive, começou o ano com o pé direito, levando quatro prêmios no Globo de Ouro, para poucas semanas depois sair como o mais indicado do Oscar 2025 e conseguir um feito inédito com Karla Sofía Gascón, a primeira mulher trans indicada como Melhor Atriz.
Mas as celebrações duraram pouco: Gascón acusou, sem provas, a equipe de Fernanda Torres e do filme Ainda Estou Aqui de orquestrar uma campanha contra ela; coincidentemente ou não, poucos dias depois, usuários das redes sociais começaram a resgatar tuítes preconceituosos de Gascón, com comentários islamofóbicos, xenofóbicos, anti-vacina e até contra o próprio Oscar. Ela disse que a cerimônia de 2021 , que premiou em que Daniel Kaluuya e Yuh-Jung Youn, parecia “um festival afro-coreano”.
Seguiu-se uma verdadeira tempestade midiática, agravada por pedidos de desculpas desajeitados e pouco sinceros vindos da atriz. A Netflix a colocou na geladeira, e Gascón só voltou a fazer grandes aparições públicas neste fim de semana, quando foi ao César e ao Oscar – onde não falou com a imprensa.
Nesse meio tempo, Emilia Pérez ganhou prêmios no Critics Choice Awards, cujas votações foram encerradas antes do escândalo, e no BAFTA, cerimônia britânica que costuma pender para produções européias. Mas tanto a rejeição do público quanto a polêmica parecem ter pesado entre os membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Não temos como saber o que se passa na mente dos votantes, que são mais de dez mil, mas parece razoável supor que parte da boa vontade deles com o filme tenha sumido em meio ao ciclo de notícias negativas.
Na categoria de Melhor Filme Internacional, em particular, outro fator entra em jogo: o sucesso de Ainda Estou Aqui e de sua campanha nos Estados Unidos. Enquanto Emilia Pérez, o favorito à categoria, caía em desgraça, o filme brasileiro, impulsionado pelo Globo de Ouro de Fernanda Torres e pela indicação surpresa ao Oscar de Melhor Filme, era visto – e aprovado pelo público.
Ele fez sucesso nos cinemas americanos, onde já arrecadou mais de US$ 5 milhões, e Fernanda Torres esteve em um sem número de eventos e entrevistas, levando a palavra do filme a muitos novos espectadores. Foi uma campanha conduzida sem grandes sobressaltos – e que ajudou a conquistar, por fim, o primeiro Oscar para o Brasil.
Mas mesmo se tirarmos da equação o longa nacional, é possível dizer que a campanha de Emilia Pérez já estava severamente abalada e tinha poucas chances de recuperar o favoritismo inicial. Seu erro crucial? Subestimar o público em uma época no qual ele tem um amplificador potente nas mãos com as redes sociais. Certamente ficará de lição para a Netflix e outros estúdios.