Escolha de filme de Chantal Akerman como melhor da história é vitória das questões de gênero

‘Jeanne Dielman’, da cineasta belga, foi eleito em primeiro lugar na lista de 100 melhores longas de todos os tempos

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Especial para o Estadão - Há 70 anos, desde 1952, a revista britânica Sight and Sound convoca especialistas de todo o mundo - críticos, historiadores, cineastas, etc - para organizar a lista dos melhores filmes de todos os tempos. Naquele ano, o número 1 foi Ladrões de Bicicletas, de Vittorio De Sica. Depois, de 1962 a 2002, Orson Welles liderou com Cidadão Kane. Em 2012, Alfred Hitchcock foi para o topo, com Vertigo/Um Corpo Que Cai. Havia expectativa se o mestre do suspense conseguiria se manter em primeiro no poll deste ano. Hitchcock caiu para segundo, Orson Welles para terceiro. O novo melhor filme de todos os tempos é Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles. Saltou da 35ª posição em 2012 para o número 1. Pela primeira vez uma mulher ocupa o primeiro lugar. Só por isso Chantal Akerman já está fazendo história.

Cena do filme 'Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles', de Chantal Akerman Foto: JANUS FILMS

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Pela ordem, de 1 a 10 - Jeanne Dielman; Vertigo; Cidadão Kane; Viagem a Tóquio, de Yasujiro Ozu; Amor à Flor da Pele, de Wong Kar-wai; 2001, Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick; Beau Travail, de Claire Denis, outra mulher entre os dez; Mulholland Drive/Cidade dos Sonhos, de David Lynch; O Homem Com a Câmera, de Dziga-Vertov; e Cantando na Chuva, de Stanley Donen e Gene Kelly. Não se pode exigir coerência numa lista feita com tantas e tão diferentes personalidades. Mesmo assim, é disparatada. Já houve um tempo em que predominavam questões sociais, políticas. Na lista atual, predomina a preocupação com a linguagem, e não apenas. Impossível não ver na irresistível ascensão de Chantal Akerman mais uma vitória das questões de gênero e movimentos como #MeToo.

Jeanne Dielman está ausente dos livros de críticas de Pauline Kael e Roger Ebert publicados no Brasil, mas aparece na série dos 1001 filmes para ver antes de morrer, de Steven Jay Schneider. No verbete agora dedicado ao melhor filme desses 127 anos de cinema - desde o experimento dos Irmãos Lumière, em 1895 -, Schneider adverte que se trata, declaradamente, de um filme difícil de ser apreciado e isso contribuiu para o status de obra marginalizada até pelos programadores de cinemateca. O nome e o endereço referem-se a uma mulher que se prostitui para manter a vida burguesa. O filme de 1975 é interpretado por Delphine Seyrig e Jacques-Doniol Valcroze - sim, o diretor da nouvelle-vague. Schnieider: “O filme oferece uma visão tão árida do enfado burguês que faz o clássico de Michelangelo Antonioni, A Aventura, de 1960, parecer uma comédia hilária de Frank Tashlin”,

O cinema contou muitas histórias de prostitutas - de bom coração, criminosas e também vitimizadas, perseguidas por clientes e gigolôs tóxicos. Chantal foge a esse foco. Seu conceito é outro - o texto terá spoiler. O filme passa-se durante três dias da vida dessa mulher. Viúva, mãe de um adolescente, profissão: prostituta. Não acontece muita coisa. Chantal faz uma espécie de crônica desses três dias a partir de atividades domésticas banais, filmadas em tempo real, por meio de planos estáticos. Ocasionalmente, atende a clientes. As duas últimas cenas fazem toda a diferença nessa narrativa de uma vida burguesa marcada pelo enfado. Jeanne mata o cliente com uma tesoura, que usa como punhal. Depois, senta-se na sala às escuras. Não revela nenhuma emoção.

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O filme dura quase quatro horas, e a duração é importante. Andrei Tarkovski definia o cinema como a arte de esculpir o tempo. Chantal também joga com o tempo, mas numa perspectiva diferente. O que lhe interessa é mostrar o enfado, a alienação - o vazio - que, no limite, levará Jeanne ao gesto radical. Em outro filme, Noite e Dia, de 1991, Chantal mostrou outra mulher dividida entre dois homens, dois motoristas de táxi, um que trabalha de dia, o outro, à noite. De novo, as atividades são minuciosamente descritas. O cinéfilo lembra-se de Delphine, com aquele figurino - aquele mistério - como a mulher também envolvida com dois homens em O Ano Passado em Marienbad, de Alain Resnais.

A cineasta belga Chantal Akerman no Festival de Veneza, em 2011 Foto: ALESSANDRO GAROFALO

Só que, em Jeanne Dielman, não há glamour algum. Cozinhar as batatas, fazer café. São gestos repetidos, expressões às vezes crispadas. O fato de Chantal, que morreu em 2015, assinar o hoje melhor filme de todos os tempos talvez inaugure uma nova era. Feminismo, minimalismo, correção política, radicalidade autoral. A lista de dez mais tem filmes como o de Lynch - o olhar masculino sobre mulheres intensas, perturbadas? Tem o olhar de mestre Ozu sobre a família, o pai, a mãe, os filhos, noras e genros. Nada mais diferente do olhar compassivo de Ozu do que a frieza assumida de Chantal Akerman. Sempre houve um culto a ela. Pelos próximos dez anos, até a futura lista de 2032, muito haverá para discutir sobre o que é o cinema, segundo a autora belga.

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