Roque, o personagem interpretado por Lázaro Ramos, vive dizendo frases lapidares e, quando o aplaudem ele diz que as sentenças não são dele - são de Gregório de Mattos, de Fernando Pessoa. Na grande cena de Roque em Ó Paí, Ó, o filme de Monique Gardenberg que estréia nesta sexta-feira, 30, ele manifesta sua indignação pela atitude, ou falta de atitude, de Boca, o personagem de Wagner Moura. Trambiqueiro e mau-caráter, Boca contrata seu serviço e não quer pagar. Roque reage - só entrega o material produzido se receber. Boca o chama de negro e repete, para agredir - negro, negro, negro. Roque faz então um discurso veemente - negro não sente, não tem sentimento, desejo, não tem braço, perna, olho, coração? Sua apaixonada indignação colhe o público meio de surpresa em Ó Paí, Ó, mas ainda virá, bem mais tarde, a emocionante corrida de Dona Joana, a crente criada por Luciana Souza e que já tem lugar garantido, não só no panteão das grandes interpretações da história do cinema brasileiro, mas a cena toda é digna de antologia. A fala de Roque é conhecida do espectador de teatro e cinema, mas deixemos um pouco de tempo para que você, leitor, se lembre de onde vem esse texto tão maravilhoso. A fala não estava no espetáculo de teatro, na peça de Márcio Meirelles que está na origem de Ó Paí, Ó. Na verdade nem o personagem de Lázaro faz parte da criação original, sendo a soma, ou a síntese, de duas outras figuras da peça do Teatro Olodum - o lixeiro que sonha ser cantor e Mary Starr, a interiorana que também sonha com o sucesso em Salvador. Ó Paí, Ó. era o filme que Monique Gardenberg queria fazer em 1996. Em 1994, na fase de escalação de Jenipapo, seu longa de estréia, ela foi ver a peça. Impressionou-se tanto que viu cinco vezes seguidas, colocando diversos atores em pequenos papéis de Jenipapo. Luciana Souza, por exemplo, faz a sem-terra cujo marido é morto e ela corre atrás de socorro. "A Luciana já corre no meu cinema há mais de dez anos", diz Monique Lançado Jenipapo, ela pensou em voltar a Ó Paí, Ó, mas aí a adaptação já era um projeto de Caetano Veloso, que lhe pediu que o ajudasse a ?preencher os formulários?, ou seja - a fazer uma canaleta com a estrutura do filme e seus personagens para mostrar a investidores americanos. Os gringos, que rezam pela cartilha de Hollywood, acharam que o filme não tinha um personagem central. Desistiram e o próprio Caetano desistiu, também. Monique já poderia ter, quem sabe, encampado o filme naquele momento, mas atravessava um momento difícil de sua vida. Sua irmã Sílvia estava doente, havia, na família, a expectativa de que se recuperasse, mas Monique, inconscientemente, bandeou-se para outro projeto que a ajudaria a encarar a morte e a dor da perda - Benjamin, adaptado do romance de Chico Buarque. Em São Paulo, há dois anos, conversando com Zé Celso Martinez Corrêa durante a temporada de "Os Sete Afluentes do Rio Ota", ela ouviu dele que também só se atirando no trabalho o diretor havia conseguido encarar a morte brutal do irmão. Monique fez teatro (Rio Ota), shows (o de Marina, no Auditório do Ibirapuera) e voltou a Ó Paí, Ó. O que a atraiu tanto naquele texto? "Ainda não tenho distanciamento para fazer essa leitura, mas com certeza fui atraída por essa idéia de uma Bahia negra, pobre, que resiste por meio da música, da libido, da fibra e vitalidade. Uma Bahia e um Brasil que resistem, mas sem perder a ternura. A índole dos personagens é para a alegria. Foi o que me encantou." Encantou, mas ela fez muitas pesquisas para sedimentar bem as mudanças que introduziu na peça de Márcio Meirelles. O original passa-se na Terça-Feira da Bênção, em Salvador. Monique transferiu a ação para o período de carnaval pelo que há nele de transgressivo, de solidário. "Todas as histórias são autênticas e pesquisadas", ela diz. Um exemplo - o catador de latas. Você sabia que no carnaval de Salvador só pode catar latas quem for Cadastrado? Enredo Ó Paí, Ó conta a história de diversos personagens que habitam um cortiço no Pelourinho. A casa é administrada com mão de ferro por Dona Joana, a crente, que vive brigando com os inquilinos, em especial a mulher que joga búzios. Numa prova de sincretismo religioso, Dona Joana recorre a ela num momento de aflição. Outra prova são os dois meninos que se chamam Cosme e Damião, como a dupla de santos que representa as crianças no candomblé. Todas as histórias se misturam durante o carnaval, numa explosão de música, sexo - e tragédia. Num certo sentido, é o Babel de Monique, um filme que usa o carnaval, mas, se você for olhar os personagens, eles ficam à margem. Monique trabalhou 40 dias na preparação do elenco, buscando o tom certo para as interpretações. Como ela diz, o cinema imprime, não exprime. Os personagens cantam, berram, riem, choram. Soltam a voz e o corpo mas não podiam exagerar, porque o microfone estava sempre em cima deles e qualquer exagero poderia ser desastroso. De alguma forma, os orixás entenderam o projeto e ajudaram a diretora. Ela buscava uma atriz para fazer a sexy Rosa. Encontrou uma que parecia perfeita, mas a garota não quis tirar a blusa e ficar com os seios de fora. Monique só encontrou outra, num catálogo de atores, quando já estava quase desistindo - e Emmanuelle Araújo acabara de fazer um workshop com Walter Lima Jr. Estava pronta para atuar (e ousar). Ela caminhou muito por Salvador, escolhendo locações e olhando a paisagem humana da cidade. Um dia, passando pela igreja que foi cenário de "O Pagador de Promessas", de Anselmo Duarte, viu aqueles dois meninos que surfavam na escadaria - e descobriu Cosme e Damião. Filmava a cena do catador de latas e entrou aquele menino de branco no plano. "As pessoas podem pensar que foi figuração minha; foi obra de um acaso maravilhoso." Um dia, conversando com Pedro Cardoso, ela contou a cena com a indignação de Roque e - vamos agora voltar ao começo - ouviu dele a sugestão: por que ela não usava o discurso de Shylock em "O Mercador de Veneza", de Shakespeare? A mais recente versão no cinema havia sido a de Alan Johnson em Ser ou não Ser, com produção de Mel Brooks. Shylock é judeu e seu protesto se encaixa à perfeição numa fala antinazista. Monique estava em São Paulo, com o Rio Ota. Ela convocou Lázaro Ramos e fez uma leitura da peça de Shakespeare com o elenco de Rio Ota. A fala, originalmente sobre um judeu, adaptou-se perfeitamente ao protesto de um negro. Não se deixe levar pelo preconceito. Ó Paí, Ó já está sendo chamado, pejorativamente, de axé movie. Monique sabe que se arrisca, mas, como ela diz, não usaria Wando e Banda Calypso em Benjamin. Ó Paí, Ó é outra coisa. Ela mistura cinema, teatro e música, as três mídias nas quais tem trabalhado. Cria cenas e personagens memoráveis. Desafia as camisas-de-força da intelectualidade e do cinema. Tem sido assim, ela conta, desde que era jovem e, numa festa de centro acadêmico, colocou uma blusa de seda. Seus colegas de esquerda lascaram - disseram que havia ?desbundado?. Se desbundar é desafiar as normas e surpreender, é o que Monique gosta de fazer, até hoje. Ó Paí, Ó (Br/2007, 98 min.) - Comédia dramática. Dir. Monique Gardenberg. 14 anos. Cotação: Bom
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