Eu, Capitão, indicado ao Oscar de melhor filme internacional e que estreia nesta quinta, 29, é indubitavelmente bonito. Emocionante mesmo. Afinal, o longa conta uma história com a qual é difícil não se compadecer: dois amigos senegaleses deixam a capital do país em busca de uma vida melhor. Moussa (Moustapha Fall) é mais determinado nessa missão, enquanto o inseguro Seydou (Seydou Sarr) tem mais receio do que o caminho pode lhes reservar.
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E é justamente nessa jornada que o filme se debruça. Acompanhamos todos os percalços que fazem parte da vida desses dois africanos tentando chegar em terras italianas, incluindo perversidades por parte de pessoas aparentemente responsáveis por levar os dois rapazes – e muito mais gente – para o ponto final da história. Há coisas horríveis, como uma caminhada de horas no deserto ou a tortura por parte de uma espécie de milicianos.
É dura a jornada. Seydou e Moussa ficam acabados – e aí daí que vem a emoção do filme. Você sente desespero pelos rapazes, preocupação pelo bem-estar, revolta por todas essas pedras e espinhos que vão rasgando a pele dos meninos que, até outro dia, estavam sob as asas da família. No fim das contas, eles buscam apenas uma vida melhor. Só que toda essa emoção fica fora de tom quando nos preocupamos em saber mais sobre a produção.
Eu, Capitão: eurocentrismo
Sobre isso, vamos fazer um exercício: se você não sabe nada sobre Eu, Capitão e se depara com essa história, pensaria que o longa-metragem estaria indicado via qual país? Senegal? Nada disso. É uma produção italiana, justamente o endereço que os dois rapazes estão tentando alcançar. A direção é de Matteo Garrone, de Dogman (2018) e Pinóquio (2021), enquanto o roteiro é de outros três italianos (Massimo Ceccherini, Massimo Gaudioso e Andrea Tagliaferri).
Entendeu o problema do filme? A história de dois refugiados senegaleses, com todas suas dores, complexidades e particularidades, passa pela ótica de quatro italianos – os africanos no roteiro, vejam só, são creditados apenas como colaboradores.
Todo aquele problema já tradicional do cinema americano do white savior – o branco salvador, que chega para salvar as pessoas do “terceiro mundo” – saem da tela e são repassadas aos créditos de produção.
Quem pensa Eu, Capitão é da mesma nacionalidade de tantos que renegam os refugiados. Muitas pessoas, com esse argumento, podem pensar que isso não pode ou não deveria afetar o filme – afinal, será que devemos levar em conta detalhes de produção na hora de falar sobre a qualidade de uma história?
E é aí que está o ponto: fazer cinema é fazer política, é discutir sociedade, é pensar nas barreiras e conquistas. A visão dessa história passar pelo olhar do europeu branco é como se fosse uma recolonização desse povo.
Matteo Garrone, incontestavelmente, possui qualidades. Há um momento belíssimo, que chega perto de alcançar um patamar elevado de cinema, em que faz sua já tradicional mistura de realidade e fantasia – uma mulher voa, enquanto os pés, feridos, parecem que ficam no deserto. Ele sabe como contar a história e como dirigir Seydou, o protagonista absoluto da história e que, mesmo com pouquíssima experiência, convence no papel.
Só que essas belezas não são o bastante para apagar a sensação de colonização, ainda mais com a cena final. Parece tirada de um blockbuster americano e que, finalmente, deixa transparecer o white savior na tela.
Deve-se aplaudir o trabalho de Seydou, de Moustapha e de outros africanos na produção. Mas, de resto, o olhar passa pela desconfiança inevitável da história que privilegia o olhar dos que renegaram em cima dos que foram renegados.
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