Como John Le Carré foi de agente secreto a mestre dos romances de espionagem? Entenda em novo filme

Vencedor do Oscar, o diretor Errol Morris fala ao Estadão sobre ‘O Túnel de Pombos’, novo filme da AppleTV+ que traz conversa crua e honesta dele com John Le Carré pouco antes da morte do escritor em 2020

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Atualização:

O diretor Errol Morris pouco se importa como as pessoas enxergam o autor John Le Carré, pseudônimo de David Cornwell (1931-2020). Seu foco principal no documentário O Túnel de Pombos é compreender, através de uma entrevista crua e honesta, aspectos filosóficos da vida e obra do antigo espião do serviço secreto britânico que se tornou o mestre dos romances de espionagem.

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“David foi uma alma-gêmea para mim. As perguntas que me obcecavam também o obcecavam. Eu trabalhei como detetive particular e ele como espião. Não éramos a mesma coisa, mas houve uma coincidência. E uma confusão que as pessoas fazem é que se trata de um filme biográfico, mas não é”, conta ao Estadão o cineasta de 75 anos.

Dessa vez ele canaliza suas atenções a uma figura muito mais celebrada do que no filme pelo qual venceu o Oscar, Sob a Névoa da Guerra (2003), que investigava a história militar americana sob o ponto de vista de Robert McNamara, o controverso ex-Secretário de Defesa dos EUA.

A arte da traição

Um dos principais temas do novo longa-metragem, com lançamento em 20 de outubro pelo streaming Apple TV+, é a traição. Afinal, Cornwell foi impactado desde cedo pela quebra de confiança quando sua mãe o abandonou aos cinco anos de idade por causa dos inúmeros casos extraconjugais de seu pai, um charlatão envolvido no crime organizado - que, anos depois, cobraria dinheiro do filho para que o libertasse da prisão.

O Túnel de Pombos leva o título do único livro de memórias lançado por Carré, disponível no Brasil pela editora Record. Também era o nome provisório de quase todos os trabalhos do escritor e refere-se a um lugar que ele visitou com seu pai em Monte Carlo, onde homens ricos atiravam em pombos no Mar Mediterrâneo.

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Os pássaros eram criados nos tetos dos cassinos da região e forçados a atravessar um longo túnel até a costa, onde seriam abatidos (aqueles que não eram mortos, voltavam para o local das armadilhas) – uma imagem que assombrou o autor por toda a vida e nos remete novamente ao peso da traição em sua trajetória.

“Minhas partes favoritas do filme têm a ver com a filosofia de David. A analogia do túnel de pombos pode ser vista como uma história de traição? Talvez. Mas há temas muito mais complexos. (...) Para mim, o filme foi uma oportunidade para explorar as parábolas do livro. Assim como o que acontece com os pássaros, trata-se de repetição até a morte, uma metáfora para todos nós”, explica Morris.

Escritor John Le Carré é personagem do documentário 'O Túnel de Pombos', do diretor Errol Morris; filme será lançado no Apple TV+ Foto: Apple TV+

George Smiley: o pai que Carré nunca teve

Não por acaso, Carré explorou a deslealdade de forma recorrente nos seus mais de 30 livros publicados. Em O Espião Que Sabia Demais (1974), por exemplo, a procura por um agente duplo, no contexto da Guerra Fria, conduz o mais icônico personagem de sua obra: o agente George Smiley.

A figura ganhara popularidade no igualmente clássico O Espião Que Saiu do Frio (1963), o primeiro bestseller do autor, inspirado por suas experiências na Alemanha, quando era agente do MI6 e vivenciou a paranoia daqueles dias, culminada na construção do Muro de Berlim.

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Smiley, que foi interpretado no cinema e na televisão por atores como Gary Oldman, Rupert Davies e Alec Guiness, é discreto, desprovido de glamour e mais empenhado em combates psicológicos do que físicos. Foi criado para ser o oposto de James Bond, uma representação um tanto imprecisa da espionagem. Em determinado momento, Carré confessa que Smiley é o pai que ele nunca teve.

Escritor John Le Carré e o diretor Errol Morris; cineasta vencedor do Oscar lança novo documentário 'O Túnel de Pombos' no Apple TV+ Foto: Apple TV+

Documentário que foge de clichês

“O interessante é que houve uma evolução durante nossos quatro dias de entrevistas para o filme. Começamos numa espécie de modelo de espionagem, onde uma pessoa controla a outra, e terminamos de forma depreciativa, onde ninguém sabia o que estava fazendo (risos)”, lembra o diretor.

Ele concebeu uma linguagem cinematográfica ao documentário, optando pela fotografia noir e claustrofóbica para entrevistar Carré, entremeada a fragmentos com atores interpretando momentos cruciais da narrativa, cuja estrutura é amparada pela montagem ágil e a trilha angustiante de Philip Glass (Kundun, O Show de Truman) e Paul Leonard-Morgan (Sem Limites).

Lamenta-se apenas a curta duração do documentário. Os pouco mais de 90 minutos passam voando, mas sequer mencionam outros romances seminais da carreira de Carré, como O Jardineiro Fiel (2001), O Gerente da Noite (1993) e O Homem Mais Procurado (2008).

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