Em 2014, o júri da mostra Un Certain Regard, no Festival de Cannes, foi presidido pelo argentino Pablo Trapero. Havia um belo filme da Argentina na seleção – Jauja, de Lisandro Alonso. O júri ignorou-o. Interpelado pelo repórter, após a premiação, Trapero justificou-se – “O filme é muito experimental. Não teve muita ressonância entre os jurados.” Trapero e seus comandados – ele prefere parceiros – preferiram atribuir o prêmio da seção a White God, do húngaro Kornel Mundruczó. O título original não deixa de fazer um trocadilho com ‘God’ (Deus) e ‘dog’ (cachorro). No Brasil, onde já está em cartaz, o filme mantém o título original.
Mundruczó pode não ser muito conhecido do cinéfilo brasileiro, mas é considerado um dos mais talentosos autores da nova geração húngara. Só para lembrar, a Hungria acaba de levar o Oscar de filme estrangeiro com O Filho de Saul, de László Nemes. Os filmes de Nemes e, agora, Mundruczó somam-se a O Cavalo de Turim, de Béla Tárr, em cartaz. A se julgar pelas amostras, o cinema húngaro bem pode ser o melhor do mundo (o filme de Tárr) ou o mais desconcertante (os de Nemes e Mundruczó). O cinema tem contado histórias de discriminados e excluídos. Assim como nunca houve um filme sobre o Holocausto como O Filho de Saul, também é pouco provável que se encontre outra fábula de exclusão como a de White God.
O filme conta a história de uma garota que tem um cão mestiço, Hagen. O pai não quer saber do cachorro. Vai aqui uma metáfora – o pai, a autoridade. Na Hungria, houve uma tentativa de lei para eliminar cães mestiços (e restringir a circulação dos ‘puros’). Na visão de Mundruczó, Hagen é abandonado, sofre todo tipo de abuso e violência – e parte para a vingança. De melhor amigo do homem, o cachorro vira inimigo. Depois de O Planeta dos Macacos, o dos cães raivosos. Na abertura do filme, Lili, a garota, está na bicicleta e é perseguida pelos cães nas ruas de Budapeste. Em Cannes, Mundruczó contou que foi muito complicado filmar com cães amestrados em ruas que deveriam estar desertas. Mas isso é adiantar-se demais. Ele contou que começar o filme pelo fim – a cena da perseguição só vai fazer sentido depois – tem a função de uma advertência. “Não queria trapacear com o espectador. É uma forma de deixar logo claro o tipo de filme que ele vai ver.”
Para o diretor, é irrelevante a possível aproximação de seu filme com O Cão Branco, de Sam Fuller, sobre racismo. “Você acha? É seu olhar.” Para ele, White God é sobre uma maioria que se estabelece como tal e, ao fazê-lo, cria a minoria. “É sobre como criamos nossos monstros e os rotulamos, sejam cães da rua, imigrantes, todo tipo de minorias.” Também a título de advertência, o diretor recorre a uma citação do poeta Rainer Maria Rilke. “Uma coisa muito terrível é aquela que mais necessita do nosso amor e compreensão.” Mundruczó diz que a frase é revolucionária porque nos compromete. “Embutida nela está a ideia de que fazer parte do sistema ou ficar contra ele é uma opção nossa.” E o diretor acrescenta. “Dizem (os críticos, os produtores, o público) que sou um provocador. Johanna, meu musical, é sobre uma viciada que se santifica pelo sexo. Tender Son – The Frankenstein Project é minha releitura do livro de Mary Shelley. Em White God, queria mostrar o que ocorreu conosco, que formamos o Leste europeu. Antes, havia uma espécie de melancolia na nossa sociedade, no nosso cinema. Desapareceu. O mundo é hoje selvagem – ponto.”
Para expressar essa selvageria, Mundruczó recorre a uma explosão de gêneros e foi o aspecto talvez mais discutido de White God em Cannes. “Creio, sinceramente, que nenhum gênero consegue mais dar conta da realidade. A pulverização da URSS somada à crise econômica fragmentou toda a Europa do Leste e, depois do 11 de setembro, acho que mergulhamos numa era de crise moral. Nosso desafio de cineastas é encontrar hoje novas formas de narração cinematográfica para colocar na tela a moral desses tempos flexíveis. Corrupção, violência. O cinema é um espelho. É importante manter o foco e não deformar ainda mais o que já anda torto.”
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